Síndrome da louça quebrada

0
1265
Imagem de SEBASTIEN MARTY por Pixabay
Imagem de Sebastien Marty - Pixabay

Não sei você, mas eu tenho dificuldade em lidar com o momento em que as louças se quebram. Sinto uma angústia, uma tristeza infinita. Não se trata da perda do objeto propriamente dita. É mais que isso. Só fui entender esse meu sentimento ao ler um poema magnífico de Alberto Caieiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa. O meu preferido:
“A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.
Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.
Não se zangam com ela.
São tolerantes com ela.
O que eu era um vaso vazio?
Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si-mesmos, não conscientes deles.
Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.
Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem o porquê ficou ali.”


Sobre a vida, melhor abafar o caso. Vamos voltar aos cacos de louça. Lembro de uma xícara de porcelana que fazia parte de um famoso “aparelho”. Era assim que a minha Mãe se referia aos jogos de jantar, sobremesa e café. O tal aparelho foi adquirido por ela a duras penas. Foram meses de namoro até que Mamãe finalmente se decidiu, obviamente, com um empurrãozinho do dono da loja. Custou uma fortuna. O valor foi dividido em infinitas parcelas. Um mimo a que ela se deu.
Pois, então! O aparelho sobreviveu à nossa infância e adolescência. Só saiu do armário uma única vez. Afinal, a visita era ilustre e merecia toda a pompa e circunstância. Exceto essa vez, as louças permaneceram (e ainda permanecem) guardadas, quietinhas, empoeiradas. Pareciam nos desafiar. Mas quem teria coragem para tocá-las? A ordem da nossa mãe era expressa.

  • Ninguém mexe nesse aparelho. Se quebrar alguma peça vocês vão se ver comigo.

Até que em um dia, sabe-se lá o porquê, Papai quebrou uma xícara. Mamãe, obviamente, surtou. Ops! Herança. Traço genético. Vai ver puxei a Mamãe também nesse quesito. Será que nós duas padecemos da “síndrome da louça quebrada”? Lembrando que no caso dela, essa “síndrome” se agravou por causa do amor sem limites por aquele aparelho que nunca mais foi o mesmo. Afinal, faltava uma peça. A xícara. Papai jamais se perdoou. O episódio nunca foi superado. Ficou que nem o aparelho. Guardadinho, empoeirando em algum canto da nossa memória.
Denise, a guardiã do aparelho, de vez em quando ainda ousa sugerir:

  • Meninas, vamos fazer um chá com biscoitinhos e bolos? A gente monta uma mesa linda no quintal com o aparelho da Mamãe.
    Todas concordam.
  • Vamos, sim. Denise. Só temos que ver a data.
  • Seria ótimo se a Lulu participasse.
  • Nesse caso, vamos programar para o Natal. Aí estaremos todas juntas.

Se Deus quiser. E Ele há de querer.

E assim a vida continua. Até que chega o Natal. Só que a casa fica cheia de crianças e desafia o plano de servir o chá no aparelho da Mamãe.

Melhor não usar o aparelho da Mamãe. Vai que alguma criança esbarra …
Assim, mais um ano em que o aparelho segue ali, guardado a sete chaves, acumulando a poeira do tempo e parte da nossa memória
Sei, não. Mas acho que você deve estar aí matutando:

  • Como é que essa moça consegue falar sobre louças e taças enquanto o mundo aqui fora tá de ponta a cabeça?


Para lhe responder (supondo que você perguntou) peço licença à querida Adélia Prado e volto a me apropriar da sabedoria dela:
“Esconder-se no porão, de vez em quando, é necessidade vital. Precisamos de silêncio e solidão (… ) Senão, corremos o perigo de nos esvairmos em som, fúria e esterilidade (…)”
E num é que é? Adélia sempre sabe das coisas.
Ah, lembrei que há uma técnica japonesa, o Kintsugi, que significa literalmente “emendar com ouro”. É usada para restaurar cerâmicas e porcelanas com laca ou cola misturadas com pó de ouro, prata ou platina.

Será que o Kintsugi também cura a “síndrome da louça quebrada? A conferir.

LEAVE A REPLY

Please enter your comment!
Please enter your name here