Morrer de asma em 2019 é injustificável, dizem especialistas

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O debate sobre as circunstâncias da morte da escritora Fernanda Young ganhou manchetes nos meios de comunicação e milhares de postagens nas redes sociais. Muitos se perguntaram se o desfecho teria sido evitado, se ela estivesse em um grande centro urbano, e não em um sítio, nos arredores de uma pequena cidade do interior de Minas. Teria faltado assistência? O socorro teria demorado a chegar? Teria sido determinante a ausência de profissionais e equipamentos na ambulância que a conduziu ao hospital?

Quaisquer especulações que se possam fazer, além de não passarem de especulação, não atingirão, se situadas no terreno do contexto imediato dos acontecimentos do último dia 25, na pequena Gonçalves, o âmago da questão: a morte de Fernanda, assim como de milhares, milhões de pessoas em situação semelhante, no Brasil e no mundo, poderia ter sido evitada.

Não se justifica, em 2019, perder a vida em função de uma crise de asma. É o que pensa, se não a totalidade, a grande maioria dos profissionais que lidam com a enfermidade. Poderia, em situações extremas, haver um ou outro caso, sem significado estatístico.

Que explica, então, que mais de 2 mil pessoas morram atualmente no Brasil, e muitas milhares de outras em todo o mundo, como consequência da asma?

Para o pneumologista pediátrico Wilson Rocha Filho, coordenador do Serviço de Pneumologia e Alergia Pediátrica do Hospital Infantil João Paulo II e do Hospital Felício Rocho, os fatores que clareiam este quadro são diagnóstico e/ou prescrição inadequados, subtratamento e problemas de acesso.

O especialista sustenta que, por vezes, o chiado ou a falta de ar no paciente fazem com que o médico conclua, apressada e automaticamente, que se trata de asma, quando podem ser derivados de problemas de outra ordem, cardíacos, por exemplo. A avaliação deve ser feita com base na história clínica do paciente e em exames físicos, mas, por vezes, além de complexa, é submetida a profissionais não adequadamente preparados.

Prescrições erradas

Prescrições erradas agravam o problema. Segundo Rocha Filho, há profissionais que abusam na prescrição, inclusive de antibióticos, sem nenhuma eficácia e em prejuízo mesmo da saúde dos pacientes. As asmas alérgicas, por exemplo, são muito incidentes nas crianças, e o tratamento básico é fugir da alergia, identificando o agente causador, seja um alimento, ácaro, mofo, fumaça de cigarro, pelo de animais ou outro qualquer.

Mas é o subtratamento, na opinião do pneumologista, o principal problema a ser vencido. Mais de 70% dos pacientes e/ou de seus responsáveis, quando crianças, não aderem ao tratamento adequado, negligenciam e subestimam a necessidade de controle. A Comissão de Asma da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia fala em 88% de brasileiros asmáticos sem controle da doença, fundamentalmente por falta de informação e conscientização sobre o assunto.

Uma asma leve, mal controlada, pode se tornar em problema muito mais sério que uma grave, submetida esta a um correto tratamento. Se pensarmos que, em média, 10% da população brasileira, mais de 20 milhões de pessoas, sofrem de algum tipo de asma, teremos a dimensão real do imbróglio.

Concorrem ainda para a explicação do quadro dificuldades de acesso ao tratamento. O Estado precisa prover meios para concluir o processo de acolhimento das populações ainda excluídas até mesmo da atenção básica, por motivos geográficos ou outros, como o deslocamento de idosos ou pessoas com deficiências físicas.

Avanços no tratamento

A inclusão aumentou de forma expressiva, sobretudo a partir de 2006, com a implantação da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), mas ainda não foi concluída. Some-se a isto a dificuldade de acesso aos tratamentos mais modernos e de alto custo, como medicamentos imunobiológicos de última geração.

Tais medicamentos não são disponibilizados pelo SUS e o acesso a eles exige, por vezes, e apenas para os que também têm acesso ao Judiciário, o recurso aos tribunais, o que gera, por outro lado, consequências para o financiamento e a universalidade do sistema. Registre-se que é bastante reduzido o número de pacientes que necessitam destes medicamentos mais onerosos.

As adversidades, contudo, não podem mascarar os enormes avanços obtidos no tratamento das diferentes formas de asma. Os medicamentos profiláticos são altamente eficazes. O arsenal terapêutico hoje é fantástico, na visão de Rocha Filho. O sistema de saúde pública, mesmo com deficiências, é, segundo ele, altamente valioso no combate à doença, com os cuidados e a enorme quantidade de medicamentos que fornece, através do Programa Farmácia Popular.

De fato, a incidência de crises agudas da doença já se reduziu de maneira muito significativa ao longo das últimas décadas. Difícil encontrar alguém de minha geração que não tenha convivido com elas, vitimando um parente, um vizinho, um colega de escola ou a si próprio. Eu mesmo cresci cercado por chiados, bombinhas e rezas, acompanhando o sofrimento de meu irmão, cuja infância, a despeito de muita folia, não escapou de constantes crises. Eram os anos 1960.

Como muitos jovens, meu irmão, à medida que o tempo passava e que se tornava um rapazinho, deixou de ter crises. Acontece, com frequência, quando as crianças vão crescendo, a despeito de minha mãe ter achado que ele foi curado por uma “simpatia”, uma dose de fígado torrado de raposa fêmea, segredo dele escondido a 7 chaves.

Incidência maior em crianças

Doença respiratória crônica, a asma é resultante da interação entre fatores genéticos e ambientais, que deixa as vias aéreas inflamadas. Nas crianças, a passagem de ar por estas vias, no caso de uma inflamação, é dificultada pelo seu pequeno calibre. Isto torna a incidência nesta faixa etária maior e o quadro, na maioria das vezes, mais preocupante. Ao crescerem, desparece este agravante, seu sistema imunológico se fortalece e, controladas as causas que determinam as crises, uma grande quantidade de jovens entra em remissão, deixando de apresentar quaisquer sinais ou sintomas.

A medicina não fala em cura da doença, já que não existe tratamento capaz de alterar o quadro imunológico do paciente. Prefere falar em remissão, que ocorre quando há o desaparecimento completo dos sinais de sua atividade. Rocha Filho questiona a rigidez desta abordagem, mesmo concordando com ela, do ponto de vista conceitual. Mais importante, para ele, é que um grande contingente de pessoas afetadas, ao controlar a doença, passa a viver, muitas vezes até a morte, sem sintomas e sem medicamentos.

Controle, portanto, é a palavra-chave.

Programa de excelência em BH

Pensando assim, a Universidade Federal de Minas Gerais e a Prefeitura de Belo Horizonte desenvolveram em parceria, a partir de 1996, um programa de excelência no acolhimento de crianças e adolescentes diagnosticados com asma, que passou, algum tempo depois, a ser chamado de “Criança que chia”. Pioneiro na América Latina, o programa tornou-se referência para todo o Brasil, sendo adotado por grande quantidade de municípios.

Abrangendo inicialmente crianças de até 5 anos, estendendo-se mais tarde até aos adolescentes de 14, o programa baseia-se, essencialmente, no acompanhamento sistemático dos asmáticos nesta faixa etária, estabelecendo vínculos com o centro de saúde, que passa a controlar o fluxo da assistência.

Cria as condições, assim, não apenas para monitorar o tratamento dos beneficiários, como também para filtrar o encaminhamento para a assistência mais complexa e as internações. Este controle envolve a disponibilização de medicamentos e, nos primeiros anos, assegurou até mesmo a distribuição dos espaçadores.

O espaçador, na opinião do pediatra Edemar Gonçalves, responsável pela Clínica da Criança, em Jaru, Rondônia, foi o que de mais revolucionário surgiu para o tratamento das crianças asmáticas, propiciando a terapia inalatória de maneira prática e rápida. Segundo ele, “um belo dia, um pediatra mais esperto pegou uma garrafa pet, fez um buraco no fundo dela e arrumou uma máscara. Estava inventado o espaçador”. A medicação, explica o pediatra, é jogada em um espaço. Quando a pessoa inspira, inspira o medicamento, e quando expira, expira o gás carbônico. Nos adultos, pode ser utilizado um bucal.

Em Belo Horizonte, no início da experiência, até mesmo o suporte de café Melita fez as vezes do espaçador, conta a médica epidemiologista da Prefeitura, Sônia Gesteira. “A gente punha um suporte contra o outro e passava fita crepe”.

Há um consenso dos profissionais de saúde que atuam na área de que o “Criança que chia” precisa de ajustes, resgatando alguns elos perdidos, de modo, inclusive, a tentar evitar internações desnecessárias, que, via de regra, ocorrem com os pacientes atendidos nas emergências dos hospitais. Sua filosofia, contudo, é considerada a pedra de toque para o controle da doença entre crianças e adolescentes.

Quarta causa de internação

Estamos, na verdade, diante de um quadro paradoxal. Os dados sobre asma no Brasil são preocupantes. Trata-se da 4ª maior causa de internação no país, 84 mil em 2018, que custam aos cofres públicos mais de 500 milhões a cada 12 meses, conforme o Datasus, Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde. É a doença crônica mais comum na infância e já atinge 6,4 milhões de pessoas acima dos 18 anos no território nacional, segundo o Ministério da Saúde.

Em Belo Horizonte, os números revelam uma oscilação merecedora de atenção. Entre 2010 e 2018, registrou-se uma tendência de queda nas internações de crianças com asma na faixa de 0 aos 4 anos que poderiam ter seu problema resolvido na atenção primária, se estivessem em tratamento regular (113,02 para 71,34, por 10 mil habitantes).

Dos 5 aos 9 anos, contudo, as internações começam a crescer em 2015 e dão um salto em 2018, quando atingem 33,80 crianças por 10 mil, contra 20,97 em 2014. Quando está em foco a população adolescente, os números de 2010 e 2018 são muito próximos, respectivamente 3,48 e 3,45 por 10 mil.

Merece registro, contudo, o crescimento exponencial em 2018, invertendo a tendência média de redução verificada entre 2010 e 2017. Já os dados de mortalidade disponíveis referem-se ao conjunto das doenças respiratórias, mas oferecem uma boa base, em função da grande incidência de asma entre as doenças respiratórias na faixa etária dos 0 aos 19 anos. No mesmo período, de 2010 a 2018, os óbitos caíram de 32 para 14, por 100 mil. Os dados são da Secretaria Municipal de Saúde da capital mineira.

Avanços no tratamento

Por outro lado, os avanços expressivos no tratamento, tanto em relação às drogas e instrumentos de alívio (para crises), quanto às profiláticas (de manutenção), são animadores. Além disso, os medicamentos disponíveis na rede pública, seja nos postos de saúde, seja nas farmácias populares, são suficientes para tratar 90% dos casos de asma no país.

Mesmo as internações, em quantidade ainda muito alta, vêm sofrendo uma redução bastante expressiva, caindo 36% entre 2008 e 2013, passando de 205.276 para 129.728, considerado todo o território nacional. A tendência de queda continuou, tendo ocorrido cerca de 105,5 mil internações em 2014, pouco mais de 92 mil em 2017 e 84 mil em 2018 (Datasus).

Como, nas palavras de Rocha Filho, “os medicamentos correspondem a 50% do tratamento e o tipo de vida que as pessoas levam aos outros 50%”, temos, como ponto de partida, grande parte das condições de êxito asseguradas, já que os remédios disponíveis têm a capacidade de atender a 90% da demanda.

Ampliar a acessibilidade ao tratamento, aprimorar a formação médica e avançar ainda mais nas pesquisas e novas descobertas responderiam por mais uma parcela significativa. Paralelamente, é imprescindível cuidar da higiene do ambiente, de modo a restringir, no limite do possível, o contato dos pacientes com os elementos desencadeadores das crises, e estimular os hábitos de vida saudável, como criar as crianças ao ar livre e praticando atividades físicas.

De todos, contudo, o maior desafio, sem dúvida, é garantir, com informação e conscientização, a adesão ao tratamento por parte dos pacientes e, no caso das crianças, pelos seus responsáveis. Esta é a chave que deve ser virada para que, no futuro, a asma passe a ser considerada não uma doença, mas um sintoma, assim como aconteceu com a febre, que, no século XVII, era tida como doença, lembra Rocha Filho.

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