Seria essa a idade da razão?

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Imagem de Gerd Altmann - Pixabay
Imagem de Gerd Altmann - Pixabay

Você lembra de quando se descobriu velho ou velha? A provocação veio do Cláudio Chinaski. Acredito que no meu caso foi quando a Nana passou a me alertar sobre o piso molhado.

  • Gisele, prestenção! O chão tá molhado! Você pode escorregar.

Em outras ocasiões o alerta veio acompanhado de um puxão de orelhas.

  • Eu avisei. Você não me ouviu. Sabia que ia tropeçar no rodo.

Ah! Teve também a mudança no tratamento. O “ei, você!” subitamente (ou não) foi substituído por um respeitoso “boa tarde, senhora!”.

Ah! Lembrei de mais um divisor de águas: a gentileza de uma garota no ônibus:

  • Senhora, assente aqui no meu lugar.

E teve aquele dia em que fui surpreendida pela pergunta de uma colega beem mais jovem:

  • Uai, Gisele! Você curte o BTS? Só falta confessar que também é fã do The Rose.

Pensando bem, há outros marcos dessa mudança. Só que não prestei atenção. Andava envolvida demais com as traquinagens da minha alma jovem. Ai nem me dei conta de que o tempo estava passando. Sequer tomei conhecimento da perda de viço e da elasticidade da pele. E da falta de destreza nos gestos? Difícil admitir que hoje subir uma ladeira ou uma escada exige um pouco mais de esforço. Tá bom! Até posso ouvir a Aninha dizendo:

–  Também você não faz pilates, né, Tia Gisele?

Ela tem razão. O pilates ajudaria, sim. Mas tenho outra explicação. Nessa caminhada pela vida a minha cabeça não acompanhou o corpo; a alma também não.  Descompasso total. Só agora é que me dei conta que se giro para um lado a vida me leva pra outro. Dança diária e estranha. É ela que nessa altura do campeonato vem ditando o ritmo da minha vida.

Há quem seja o inverso. O Bernardo, por exemplo. No corpo de um menino de 14 anos mora uma alma antiga. Ele odeia quando digo isso. Mas é verdade.

Essa dicotomia incomoda? Não. Nem um pouco. Ruím seria se todos dançassem no mesmo ritmo, né mesmo? E se tem uma coisa que aprendi é não entrar nesse embate. O melhor é deixar fluir. É que nem quando a gente borda. Brigar com a linha está fora de cogitação. É derrota na certa. Pra isso há uma dica infalível: quando se dá um nó é preciso ir desenrolando bem devargazinho. Se puxar arrebenta o fio. Aí o nó não desata nunca mais. Ninguém tá a fim de uma vida cheia de nós, né mesmo?

Quer saber? A verdade é que ando cansada. Chega de bagagens pesadas. O fluir do tempo me tornou uma caçadora de levezas. Tenho prestado menos atenção naquilo que pesa na alma. Ando meio Cora Coralina: “Daqui para frente levo apenas o que couber na bolsa e no coração”.

E por falar nisso, você já viu uma árvore de passarinhos? Eu já. Aqui mesmo do lado de casa há uma. O fenômeno sempre acontece um pouco antes da chuva. Se as nuvens começam a pesar, aos poucos, centenas de avezinhas vão se achegando. O abrigo temporário é um ipê. Elas ficam por ali arrulhando até que a chuva cai. Aí voam em debandada. Um deslumbramento.

Papai também era assim. Levou para a vida o que aprendeu na lida. Pra que relógio? A natureza ditava as horas e o ritmo da vida. Sabia o que plantar, qual era a melhor época e se estava na lua certa. Infelizmente não herdei essa sabedoria. Dele só fiquei com o olhar para as coisas ditas desimportantes. Manoel de Barros traduziu direitinho: ” Para saber dos passarinhos só preciso de suas ignorâncias. A voz de um passarinho me recita”.

Sobre o futuro? “Os morros se andorinham longamente. Eu me horizonto”.

4 COMMENTS

  1. Envelhecer é um processo extraordinário em que você se torna a pessoa que você sempre deveria ter sido. David Bowie disse isso e eu concordo com ele.

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