O produtor cultural, jornalista e escritor Afonso Borges, mesmo em tempos de pandemia do coronavírus, não para. Agora mesmo ele acaba de escrever um belo texto em que faz uma reflexão sobre o isolamento social a que tivemos que nos submeter por conta de um inimigo invisível e que está assustando o mundo.
O texto foi originalmente publicado no caderno de Cultura do jornal Estado de Minas, na coluna do jornalista Helvécio Carlos. E o Boas Novas reproduz, com a autorização do autor, e com uma novidade: as palavras escritas por Afonso ganharam ainda mais vida na voz do jornalista mineiro Chico Pinheiro, como vocês poderão ver no vídeo abaixo.
Afonso pede, aliás, que façamos uma pequena retificação no texto original publicado no Estado de Minas. Lá, ele se refere a um poema e o atribui ao escritor José Alexandre Marino. A autoria, na verdade, é do João Batista Jorge, como está abaixo.
Afonso Borges é o criador do projeto “Sempre Um Papo”, que começou em 1986 e é reconhecido como um dos programas culturais de maior credibilidade do País. Sua missão, como explica Borges, é contribuir para o desenvolvimento de políticas de incentivo ao hábito da leitura a fim de formar cidadãos mais críticos.
Isolamento social ou férias forçadas?*
Não acredito em mudanças associadas a elevações espirituais. A mudança, de verdade, está ligada ao sofrimento. Mas o que mais tenho ouvido ultimamente é o discurso de auto-ajuda-esotérico-espacial-astronômico sobre o impacto do isolamento social na vida das pessoas. Isso não existe.
O que no fundo todos ocultamos é que já vivemos, há muito tempo, uma espécie discricionária de isolamento social. Nossas casas têm grades, cacos de vidro nos muros, cercas elétricas e câmeras por toda a parte; moramos anos e anos em edifícios sem conhecer nossos vizinhos; os círculos de amizade dificilmente ultrapassam as relações familiares e profissionais; nossas ações comunitárias e sociais se limitam a contribuições financeiras e inodoras, diferentemente do voluntariado legítimo, presente, de outros países. Ou seja, em tese, o confinamento espontâneo veio por causa de outro vírus: o medo.
Me lembro de um poema do querido João Batista Jorge, que fala das marquises das cidades, que abrigam, sob chuva intensa, pobres e ricos. Pois veio a chuva intensa e colocou todos sob a mesma marquise, fugindo da doença, um vírus arrasador, com o menor tamanho do universo. E vem em forma de defesa, de vingança – já está provado que COVID-19 é uma reação da natureza contra o desmatamento, contra destruição desenfreada do planeta, numa espécie de guerra biológica natural.
E nos encontramos trancafiados em casa, onde sempre estivemos e nunca saímos, reclamando das intempéries da escravatura: fazer comida, limpar a casa, cuidar das crianças e, principalmente, da higiene – tarefas antes delegadas às nossas escravas modernas, as domésticas. Nunca é tarde lembrar que esta profissão foi regulamentada no Brasil há apenas 5 anos.
Em outros países e culturas, as tarefas domésticas não fazem parte da servidão. Principalmente aqueles que foram atingidos pelas guerras, a consciência do fazer individual se mistura ao coletivo. A nós, atravessados pela rotina destes cinquenta e poucos dias, o silêncio entre paredes oculta as mazelas da dificuldade do convívio interno. A tal “ecologia interior” que Leonardo Boff, um de nossos mais agudos pensadores, escreveu. Se falta concentração, sobra conflitos entre os familiares; se falta colaboração, sobra egoísmo.
Este confinamento só vai trazer crescimento, evolução e “mudança” – esta palavra em estado de dúvida -, se houver harmonia, solidariedade, divisão de tarefas e muito, muito amor entre os familiares. Caso contrário, serão apenas férias forçadas – como muitos estão dizendo por aí.
*Afonso Borges – jornalista, escritor, produtor cultural