Aconteceu de fato uma noite feliz

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Imagem - Osley José
Imagem - Osley José

Um dia depois do Natal, à mesa do café da tarde, Lulu compartilhou comigo várias lembranças da infância. Conversando sobre os nossos costumes e hábitos, me lembrei de uma lenda contada com maestria pelo Osley José:
“Dizem as areias do tempo que quando os pastores foram adorar o Divino Infante decidiram levar-lhe frutos e flores produzidos pelas árvores que milagrosamente naquela noite ofereceram suas mais belas flores e seus mais deliciosos frutos.
Depois dessa colheita houve uma conversa entre as árvores num bosque. Regozijavam-se elas de terem podido oferecer algo a seu Criador recém-nascido: uma, suas tâmaras; outra, suas nozes; uma terceira, suas amêndoas; outras ainda, como a cerejeira e a laranjeira, que haviam oferecido tanto flores quanto frutos. Do pinheiro, porém, ninguém colheu nada. Apresentava pontudas folhas, ásperas pinhas; não eram dons ou presentes apresentáveis.
O pinheiro, reconhecendo a sua nulidade e, não se sentindo à altura da conversa, rezou em silêncio: “Meu Deus recém-nascido, o que Vos posso oferecer? Minha pobre e nula existência. Esta, alegremente Lhe dedico, com grande agradecimento por me terdes criado na vossa sabedoria e bondade”.
Deus se agradou com a humildade do pinheiro.
E, em recompensa, fez descer do céu uma multidão de anjos portando estrelas e se afixarem nele uma multidão de estrelinhas. Eram de todos os matizes que existem no firmamento: douradas, prateadas, vermelhas, azuis. Quando o outro grupo de pastores passou, levou não apenas os frutos das demais árvores, mas o pinheiro inteirinho, a árvore de tal forma maravilhosa da qual nunca se ouvira falar.
E lá se foi o pinheiro enfeitar a gruta de Belém, sendo colocado bem junto do Menino Jesus, de Nossa Senhora e de São José”.
A trajetória do pinheiro recompensado pela sua humildade tem tudo a ver com “Coração de Vidro”, o primeiro livro dos muitos que marcaram e ainda marcam a vida da Lulu, uma leitora voraz que vai de Diana Gabaldon a Raquel de Queiroz na velocidade da luz.
Pra quem ficou um pouco perdida, “Coração de Vidro” foi escrito por José Mauro de Vasconcelos. Trata-se de uma coletânea de quatro contos. Um deles fala de um pinheiro que apesar de sua rusticidade e falta de atrativo foi escolhido para enfeitar a casa de uma família. A felicidade da pobre árvore durou pouco. Logo após as festas, sem utilidade e já com os galhos ressequidos, viu-se abandonada no porão.
Minha irmã, que mora em Brasília, contou que na hora de montar a árvore sempre se lembra desse conto. Não por acaso, escolhe galhos secos que encontra durante as caminhadas pelo cerrado. E nesse ato repete a nossa Mãe. Orgulhosa de suas origens, enfeitava o Natal da nossa infância com galhos secos ornados com algodão e muitas bolas coloridas de azul, vermelho, dourado e prata.
Sofia, a sobrinha que escutava tudo em silêncio, palpitou:

  • Mamãe não usa algodão porque a imagem não tem a ver com a nossa realidade. Na nossa árvore nada remete à neve ou outros elementos europeus. Enfeitamos com passarinhos, borboletas e flores.
    Sou menos purista. Aqui em casa, como na maioria dos lares de famílias numerosas, há aqueles que defendem o modelo da Mamãe. Por isso preferem o galho seco. Eu sou da ala do pinheiro. No caso, fake, enorme, enfeitado com várias peças, muitas herdadas da Mamãe; outras garimpadas numa feira de Natal que visitei em Salzburg há anos.
    Você deve estar aí matutando com seus botões:
  • A Gisele está fora do ar. O Natal já passou. Ela deveria estar falando sobre réveillon, ano novo, expectativas para 2023 etc.
    Tá bom. Até concordo. Só que em termos. É que não sou dessas de fazer planos, estabelecer metas. Até já fui. Mas a realidade mudou meu foco. Sobre o futuro, peço licença para repetir o Cazuza: “vem comigo que no caminho eu te explico”.
    Vá por mim. A motivação está em avançar por mares nunca dantes navegados. É o que nos mantém vivos. Inteiros.
    Ah, voltando ao Natal, como presente atrasado, deixo um poema de Bartolomeu Campos de Queirós:
    “O certo é que um menino nasceu e partiu.
    Deixou um recado para ser lido no cosmo infinito, no espelho da água, no silêncio da pedra, no percurso do voo, no silêncio das dúvidas.
    Mas só quem olha com dois olhos pode decifrar.
    A sua presença ficou no sopro do vento, no ruído do inseto, no canto da cigarra, na queda da chuva, na maré do mar, no rumor da cachoeira.
    Mas só quem escuta com os dois ouvidos pode entender.
    Nas palavras que trocam a guerra pela paz, o amargo pelo doce, o nunca pelo sempre, sua visita breve fica mais confirmada.
    Mas ninguém contesta que há um “antes” e um “depois”, e que houve uma “noite feliz”.

6 COMMENTS

  1. Muito lindo! Não conhecia a história. E o poema? Quanta beleza em tão poucas linhas! Valeu Gisele!!! Obrigada. ❤️🙏

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