A reta é uma curva que não sonha

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O casal Bicalho e seus 10 filhos. Foto - arquivo pessoal
O casal Bicalho e seus 10 filhos. Foto - arquivo pessoal

Nasci em casa. Outros irmãos, também. A última foi a Maria Luiza. Depois dela vieram mais quatro, todos em hospitais.
Mas por que essa mudança de planos? É que antes da Lulu, teve o parto da Gyslaine, o meu, o dos gêmeos Gilda e Guilherme e o da Denise, este o mais difícil. Durou horas. Mamãe, subindo pelas paredes de tanta dor, esgoelava. Papai, aflito, vagava pela casa sem saber o que fazer; meus avós, também. O cenário era caótico. E quando a maioria pensava que a parteira já tinha lançado mão de todo conhecimento acumulado em centenas de parto, ela tirou da cartola (ou seria do chapéu?) uma solução milagrosa: foi para o terreiro, cobriu a cabeça com um chapéu e, rezando sem parar, deu dez voltas em torno da casa. Dito e feito. Ritual finalizado, para alegria e alívio de todos, a Denise veio ao mundo saudável e barulhenta.
Mas não pense que esse foi o primeiro momento celebridade da parteira. Antes, a moça já tinha estrelado outros não menos turbulentos. Em um deles saiu cavalgando pelo terreiro nas costas do Papai. Tadinho! Sempre ele. No parto da Gyslaine a parteira estava bêbada. Mamou uma garrafa inteira de Vinho do Porto. A bebida estava guardada a sete chaves. Seria usada como fortificante. Vovó acredita que o vinho ajudaria a Mamãe a produzir muito leite. Da garrafa nunca mais se ouviu falar. Quanto ao leite, sem a ajuda preciosa do vinho, só pingava. Foi preciso buscar apoio de uma amiga recém parida.
A abertura da era dos partos em hospitais se deu com a Jacqueline. Você deve estar se perguntando aí:

  • E a parteira? O que foi feito da moça? Seus pais deram linha nela?

Que nada! Você não vai acreditar. A parteira, estrela absoluta dessa série de episódios familiares, passou a acompanhar os partos da Mamãe no hospital. Não se intimidava. Na verdade, ser achava a própria médica na sala de parto. Desinibida e confiante, dava palpites a torto e a direito para espanto de toda a equipe.
Depois da Jacqueline vieram o Oswaldinho, o Beto e o Ricardo, o último filho de uma escadinha de dez. Nasceu no São João de Deus, em Divinópolis. Mas como nessa nossa família nada é como deve ser, o caçula veio ao mundo pesando cinco quilos, trezentos e cinquenta gramas. Obviamente virou a atração do berçário. Pacientes e acompanhantes faziam fila para conhecer aquele bebê enorme. As enfermeiras, que não eram boba nem nada, aproveitavam ao máximo os holofotes. Passavam o dia exibindo o bebê gigante como se fosse um troféu.

Mamãe e Papai, orgulhosos do rebento, só sorriam. Falando nisso, tá me ocorrendo uma coisinha aqui: você não acha que o holofote também deveria ter sido para a minha mãe? Afinal, parir um filho desse tamanho, mesmo que tenha sido uma cesariana, não é para qualquer uma. Mamãe era mesmo uma guerreira. Não há como negar.
Ah, só para esclarecer, o tamanho fora dos padrões do meu irmão caçula tem uma explicação: Mamãe teve diabetes gestacional, um dos motivos para o nascimento de bebês gigantes. Todos os que nascem com mais de quatro quilos recebem essa classificação. Além desse, há outros motivos: genética, obesidade materna e o ganho excessivo de peso na gestação com alto consumo calórico. Se sou especialista? Que nada! Li no Google.
Penso que no caso do meu irmão pode ter sido uma combinação de fatores. Meu bisavô Tatá era muito alto. Tinha pés enormes. Papai contava que ele calçava 46. Sapato só feito sob medida. Ricardo pode ter herdado essas características dele.
A verdade é que em outros tempos vivia-se no limite. Nossa família não é exceção. Naquele tempo, a maioria dos partos era feito em casa. Hoje, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que apenas 15% sejam não naturais. Lembrando que a cesárea, quando bem indicada clinicamente, salva vidas. Mas, se for realizada sem necessidade, aumenta os riscos, ou seja, aumenta as taxas de mortalidade materna e neonatal.
Epa! Esse papo dá pano pra manga. Fica para outro momento. Voltando à vaca fria, me dei conta que hoje em dia a parteira da nossa família seria muito bem-vinda em algumas salas de parto. Isso porque li em algum lugar que há hospitais que respeitam o repertório de saberes e práticas ancestrais.
Curiosa, fui assuntar com meu amigo Google. Constatei que há, sim, e que tem, inclusive, uma lei que garante o direito da gestante a um acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, o parto e pós-parto imediato. E que o SUS reconhece o trabalho das parteiras, além de incentivar o parto humanizado. Sem dúvida, uma ótima notícia. E quem, como nós, sobreviveu aos partos com parteiras está aqui para confirmar que, como diz o Manoel de Barros, “a reta é uma curva que não sonha”. Esse mundo dá voltas. Ainda bem, né? Sonhemos, portanto.

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