Toda mesa é sempre um convite

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Imagem Pixabay
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Quem aí gosta de um toque doce nos pratos salgados? Aqui em casa o placar é bem meio a meio. Há os que amam. Na mesma medida há aqueles que torcem o nariz para um lombinho de porco com um molho de laranja. Pode isso, Arnaldo? E se a base desse molho for goiabada ou geleia de jabuticaba? Aí então é que o bicho pega. Uma pena! Fica bom demais.

Tem também quem odeie a costela suina com purê de maçã, o tender com abacaxi, a salada de presunto com figo, o salmão com molho de maracujá. E o que dizer do filé com molho de chocolate? Chance zero de agradar.

Bernardo e Juju fazem parte da turma daqueles que odeiam farofa com banana, maionese com maçã e por ai vai. E nem vem me dizer que isso tem a ver com paladar infantil e coisa e tal. João Guilherme tá ai pra desmentir essa tese.

  • Credo, Tia Gisele! Farofa não é sobremesa. Pra que colocar banana.
  • Tia Gisele, se tiver maçã nessa maionese não vou comer de jeito nenhum.

Bobagem. É preciso dar uma chance ao novo. Despertar o paladar. Convidá-lo para novas aventuras. Pacificar a relação com a comida.

Por falar nisso, esqueça a eterna pendenga da uva passa. Essa briga já deu. Aliás, cozinha não é lugar pra embates. Fuja deles. Aproveite a refeição para demonstrar afeto e agradecer pelo pão. Nesse mundão de meu Deus há muita escassez de alimentos.
Esse papo todo me lembrou a cantora Nina Simone. Ela disse certa vez que a gente só deve se retirar da mesa quando o amor não estiver mais sendo servido. Por aqui, a gente segue o conselho a risca. Periga a família querer morar à beira da mesa posta. Emendar café com almoço, almoço com café da tarde, café da tarde com jantar, jantar com ceia. Até que o dia recomeça e a cena se repete. Essa permanência não é exclusividade dos Bicalho Resende. Na Minas profunda é bem assim. A vida passa beeem devagar e a mesa está sempre posta. Enquanto isso, a gente vai sedimentando afetos e driblando o desamor.

Mas não pense que vivemos em um mar de rosas. Mesmo que o tempo esteja bom, para que não haja tempestades a vista é preciso obedecer a algumas regras. Tanto para a vida quanto para a cozinha. E aqui vale o que aprendemos com nossos avós. Na cozinha mineira ancestral todo prato doce pede um toque de sal. O mesmo vale para os pratos salgados. Quer um exemplo? Para diminuir a acidez do molho de tomate apele para um punhadinho de açúcar. Vale também acrescentar cenoura ao cozimento. É tiro e queda (ops!). E se a ideia é preparar um delicioso arroz doce? Não esqueça do toquezinho de sal. Esse segredinho vai fazer com que a sua sobremesa seja única. Inesquecível. E o bolo chocolatudo? Chuvinha de flor de sal nele. Seu paladar vai agradecer de joelhos.
Ah, sobre a flor de sal, se você não é íntimo dessa preciosidade, saiba que a iguaria, usada apenas na finalização dos pratos, nada mais é que o cristal de sal que se forma com evaporação da água do mar. A cristalização acontece quando o grãozinho é exposto ao clima seco, a sol e a ventos abundantes. O nome fofo vem do formato. Os cristais são semelhantes a flores.

E sobre o casamento do doce com salgado? Esse é o casal agridoce. Uma junção dos termos agri e doce. O “agri” faz referência à palavra acre, que tem origem no termo “acer”, do latim. Significa ácido ou azedo. Lembrando que esse termo também se aplica a outros contextos. Pode até mesmo descrever sensações e sentimentos opostos que se complementam. Como numa relação de amizade ou em um casamento. Se na culinária essa mistura gera uma explosão de sabores, nas relações a dois ou em família não é diferente. Para um ” … e foram felizes para sempre” junte todos os sentimentos e deixe que se enturmem dentro da panela. Dá a maior liga. Depois é só partir para o abraço. E para os beijos e palavras de afeto também.

Sobre as refeições compartilhadas, há poucos dias a querida amiga Ofélia repetiu o adorável Mia Couto. Para ambos, cozinhar é mesmo um ato de amor e que quando todos estão à mesa é comunhão. Tudo isso me lembrou a Santa Ceia. Lembrei ainda de um texto magnífico escrito pelo professor Eduardo Machado em 2019. “Não sei se você reparou, mas todo altar é uma mesa de refeição(…) Mesa é sempre um convite. Em torno dela as pessoas se reúnem e não é só para comer e beber. Aliás, o homem talvez seja o único animal que come sem estar com fome e bebe sem estar com sede. O ato de estar à mesa é, para nós, simbólico.
(…) na mesa da minha família o primeiro alimento que compartilhamos é a presença do outro. O encontro com o outro me alimenta, me faz fraterno, companheiro (…)
Só faz sentido estar à mesa ao lado de pessoas com quem vivemos, ou tentamos viver, em fraternidade. Nós somos o corpo. Nós fazemos o milagre eucarístico acontecer ao redor da mesa da vida… “

Boa semana e obrigada por comungar semanalmente comigo a sua adorável companhia. Até mais. Fique bem!

10 COMMENTS

  1. Como disse a Jacqueline, dá uma vontade danada de sentar à mesa com você, para você contar essas histórias maravilhosas e fazer essas conexões com a maestria que só você sabe fazer.
    A mesa é um lugar sagrado, né?! Como ela é marcante. Lugar de compartilhar, de servir, de dar e receber amor.

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