Sem açúcar e com muito afeto

• Tem açúcar?
• Tem não.
• Tem farinha de trigo?
• Não tem também, não?
• E leite e manteiga?
• Uai, tem não!
• Então cumé que vira um bolo bão desse jeito?

Alquimia. Pra adoçar é só juntar ameixa, banana e passas; vai água, gordura de coco e ovos pra amolecer a massa. A consistência vem da aveia. O bolo leva ainda fermento em pó, uma pitada de sal e raspinhas de limão. Cravo e o gengibre não podem faltar. Transportam a gente lá pelas bandas do Oriente. Uma viagem sem volta. Coisa boa demais.

• E a receita? As medidas?

• Tem receita não. Faço tudo no olho. Coisa de bruxas do bem. No caso, eu.

Como assim? Bruxa? Uai! Quem põe a mão na massa é meio bruxa, sim. Na vida não é diferente. Se na cozinha a gente junta um ingrediente aqui, outro acolá, mistura secos e molhados, coloca fermento pra massa crescer, acrescenta uma pitada de sal para levantar o sabor e limão para trazer acidez, no caldeirão da vida a gente não abre mão da mistura que junta pessoas do bem, descarta quem não agrega, exclui ou inclui uma coisa ou outra. Aí vai mexendo.

Mas pra receita dar liga é preciso trazer um toque ácido. Não se esqueça de salgar. Mas é bem pouco, viu? Uma pitadinha só. Ah, picância também, porque a gente não tá morta, né fia?
Mas como nem tudo é perfeito, pode acontecer dessa receita desandar. Nesse caso, refaça tudo. Se você me permite a redundância, recomece pelo começo. Recomendo ainda uma boa trilha sonora. Há uma canção da Zélia Duncan que diz bem assim:

“Deito sua cabeça no meu colo/ te imploro pra respirar macio/ pra lembrar que quando a vida esmurra a porta/ a gente solta o trinco e oferece um chá. / Pede calma e bota a alma pra pensar/ guardo sua mão dentro das minhas/ pra dentro dos meus olhos o seu olhar / te mostro o filme que fiz outro dia/ num enredo suave a vida nos enveredar/ pede calma e bota a alma pra pensar/ final feliz já nem importa/ mas um feliz caminhar/ que pede calma e bota a alma pra pensar.”

É bem isso. Um dia você está por cima; na manhã seguinte, nem tanto. Haja adrenalina. Esqueça a linha reta. Essa, além de chata, é rara. A vida do mundo real consiste literalmente em um dia depois do outro. O gráfico é maluco. Altos e baixos. Se hoje está tudo bem; amanhã, talvez não. O que importa, como diz a Zélia Duncan, já nem é o final feliz; o que conta mesmo é a trajetória. Mas que seja percorrida com calma. Fico aqui imaginando que se ao compor a Zélia tenha bebido na fonte de Drummond!? Vai saber né? Para aplacar a dor de um amor não correspondido, o poeta itabirano recomenda calma:
“Carlos, sossegue, / o amor é isso que você está vendo:/ hoje beija, amanhã não beija, /depois de amanhã é domingo/ e segunda-feira ninguém sabe/ o que será. /Inútil você resistir/ ou mesmo suicidar-se. / Não se mate, oh não se mate, (…) não se mate.”
O que tanto a Zélia quanto o Drummond estão querendo nos dizer é que há luz no fim do túnel. Bateu uma “bad”? Normal. Tenha fé. Caminhe. Nunca desista. Siga em frente. A verdade é que a vida, regida pelo amor, seja por quem for, é uma experiência desordenada e imprevisível. É isso que nos torna fortes.
Ah, sobre a receita, esse bolo existe de fato. É uma delícia. Faz o maior sucesso aqui em casa. Lembrando que os diabéticos podem comer sem culpa. Os intolerantes à lactose também. A receita não leva açúcar, manteiga e leite. Se há excesso? Só de afeto. Coisas de bruxas do bem.