O fio indesmanchável da vida

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Imagem - Pixabay
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Quando uma palavra inesperada muda a percepção do espaço, acorda uma saudade, rende uma história inteira. É assim mesmo. Os escribas têm toda razão. Basta uma referência para provocar um turbilhão de lembranças. A coisa vai fluindo, fluindo e quando a gente vê o filho tá parido.
É que nem cheiro. Pode ser de comida, de perfume, de chuva, de flor ou de fruta. Vento ou cangote, tudo vira teletransporte e nos faz viajar. Chega até a promover reencontros memoráveis com a memória afetiva.
Inda agorinha o vento trouxe o cheiro de melancia cortada. Veio do sacolão aqui de perto de casa. Humm!

  • Mas, melancia tem cheiro? Tem cheiro do que?
  • Uai, tem cheiro, sim. Do Parque Municipal de BH. 
    Achou estranho? Né, não. Todos os anos Papai e Mamãe juntavam o bando de dez filhos. Traziam todo mundo para a Capital para tomar vacina. Tinha gotinha, não. Era picada mesmo. Para não ter choradeira, a recompensa vinha em forma de uma linda, perfumada e suculenta fatia de melancia.
    Naqueles tempos sem SUS não tinha essa facilidade de virar a esquina e entrar no posto de saúde do bairro. Se alguém queria proteger a família contra coqueluche, sarampo, catapora, poliomielite e outras mazelas o jeito era pôr o pé na estrada. Eram tempos do INAMPS … Ihhhh, abstrai. Depois conto sobre o SUS. Essa história dá pano pra manga.
    Por falar em abstração, esse tem sido um santo remédio. O mundo real, se já era difícil, agora ficou que nem o solo lunar. Está inóspito. Árido. Inabitável. Ainda estamos tentando nos acomodar nele. É nesse estado de coisas desarranjadas que o historiador Arthur Helps me vem à memória. É dele a certeza que às vezes a leitura é um modo engenhoso de evitar o pensamento. E num é que é mesmo? Ler pode ser mesmo um santo remédio para tempos difíceis. E é em nome dessa cura que ando buscando refúgio nos livros. Conhecedora dos meus gostos literários e para remendos na alma, a Lulu mirou e acertou na mosca. Voltei de Brasília com a “A biblioteca de Paris” na mala.
    O livro é baseado em uma história real vivida na Paris de 1939. É nesse contexto que a jovem Odile Souchet, funcionária da Biblioteca Americana em Paris, enxerga a insensatez da Segunda Guerra Mundial como uma ameaça ao emprego dos seus sonhos. Ela, a exemplo de muita gente, não desconhecia que para os nazistas os livros eram como abrigos de palavras e de as ideias que deveriam ser destruídas. Para evitar que o pior acontecesse Odile e seus colegas se juntaram à Resistência com as melhores armas que possuíam: os livros. Colocaram a instituição à disposição dos judeus, que, expulsos de suas casas, se sentiam seguros entre eles. Mas, chega de spoiler. Desejo que você também se perca nessa história de amor, amizade, família e sobre o poder que a literatura tem em unir as pessoas.
    Um dia talvez eu até escreva um livro. Algo despretensioso. Mais um relicário que livro propriamente dito. Apenas um lugar para perpetuar a memória desse ajuntamento de emoções que é a minha família. Assim, quem sabe, tudo poderia voltar a ser como antes. Como na fluência de Adélia Prado.

“Eu fiz um livro, mas oh meu Deus,
não perdi a poesia.
Hoje depois da festa,
Quando me levantei para fazer café,
Uma densa neblina acinzentava os pastos,
As casas, as pessoas com embrulho de pão.
O fio indesmanchável da vida seguia seu curso.
Persistindo a necessidade dos relógios,
dos descongestionantes nasais.
Meu livro sobre a mesa contraponteava exato
Com os pardais, os urinóis pela metade,
o antigo e intenso desejar de um verso.
O relógio bateu sem assustar os farelos sobre a mesa.
Como antes, graças a Deus.”

Por hora, ainda vivo, como afirmou Adélia em uma entrevista, no deserto da linguagem.

10 COMMENTS

  1. Os pais de nossa geração nos ensinaram a apreciar as coisas simples ofertadas pela vida, como uma fatia de melancia. Algo que falta nos dias de hoje. Obrigada pela sugestão de leitura. Espero que o seu “relicário” chegue rápido aos nossos ávidos olhos. Abraço!

  2. Tenho uma lembrança da sua mãe dividindo uma melancia gigante em fatias iguais ,com o coração generoso e amoroso de mãe que queria que todos tivessem a mesma porção E guardo, ainda, gratidão e amor por também ser incluída na divisão Porque aquela mãe de dez filhos tinha um coração gigante para acolher tantos outros A sua crônica reflete a atitude dessa mãe que cuidava,protegia,acolhia.E tinha a alma criativa e lúdica ,porque, sempre, fazia de todos os momentos poesia
    Na fila, esperando pelo seu livro.Com certeza só fará aquecer e confortar o coração ,como tudo que você escreve

    • É verdade. Os braços da Mamãe era um ninho quentinho que sempre abrigava que deseja se deixar ficar ali. Bia, lembra dos “meninos de Betim”, do Einstein e de tantos outros queridos acolhidos pela Mamãe?

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