De perto ninguém é normal

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Trabalho do artista plástico Gildásio Jardim feito com tecido chita - Crédito: Gildasio Jardim/ Reprodução
Trabalho do artista plástico Gildásio Jardim feito com tecido chita - Crédito: Gildasio Jardim/ Reprodução

Volta e meia alguém comenta:

-Fico imaginando de onde é que você tira inspiração pra escrever. É cada ideia?

Mia Couto teria uma resposta na ponta língua:

“Eu sou as histórias que contenho”.

Seria muita pretensão se me reconheço assim? Talvez até seja, mas há muita verdade nisso. É com o meu coração que escrevo. Aí, mais uma vez, Mia Couto vem em meu socorro:

“(…) ouve teu coração; é com ele que tu escreves.”

E num é que esse meu coração combalido anda rouco e exausto do tanto que anda me dizendo? Ainda outro dia me chamou a atenção para a sonoridade dos nomes dos tecidos. Pode isso, Arnaldo?

Só depois fui entender o alerta. Mamãe, enquanto se demorava estendendo o lençol sobre a cama, adoçava a voz pra dizer como se fosse um elogio:

  • É de cretone. E voltava a alisar amorosamente o tecido. Cretone. Adoro. Palavra linda, né? Linha direta que me conduz ao som da voz da minha mãe.

Há outros nomes tão sonoros e amorosos quanto cretone. Seda, opaline, pele de ovo, organza, organdi… quer coisa mais linda que cambraia de linho? Cada um desses tecidos conta uma história. As roupas do bebê da minha família – sou a segunda de uma ninhada de dez – eram todas de opaline e pele de ovo. Mamãe bordava peça por peça. Se fechar os olhos posso até sentir a textura do tecido. Macia ao toque. Lembro também do cheiro, das cores, da trama dos bordados. Ponto cheio, ponto sombra, ponto atrás … cada um mais lindo que o outro. Todos perfeitos. Mamãe se preocupava com o acabamento. Só com os dois últimos filhos ela se rendeu às roupinhas compradas prontas. E foi aí que a mágica deixou de acontecer.

Não há encantamento na malha, viscose, poliéster, nylon. Esses nomes lhe dizem alguma coisa? Contam alguma história? Resgatam memórias? A mim não dizem nada. Meu coração nunca me alertou sobre eles. Diria que são utilitários. Nada mais. Só se prestam a cobrir a nudez e a revestir as superfícies

Ainda outro dia, preocupada com essas abstrações, comentei com uma das minhas irmãs:

  • Será que isso é daquela dessa tal da “fadiga pandêmica”? Pessoas ditas “normais” também se apegam aos nomes de tecidos?

Lulu, a psicóloga da família, me tranquilizou. Disse que não sou a única. Que ela também tem dessas coisas.

  • Gisele, você já reparou que há comidas com nomes que remetem a tecidos? Massa filo, por exemplo. Hummm!

Uai, e num é que é? Ah, só pra esclarecer, filó remete a véus de noiva, cortinas que balançam ao vento. Já, fillo (ou phillo) é uma massa de sabor neutro, muito delicada, gostosa, versátil e crocante. É usada no preparo de receitas doces e salgadas, como strudels, tortas, tortinhas, rolinhos primaveras.

Ah, tem um artista plástico nascido em Joaima, no Vale do Jequitinhonha, o Gildásio Jardim. Ele também se apegou às memórias e aos tecidos, no caso, a chita, pra construir a sua belíssima obra. Vale muito a pena conhecer. Puro encantamento.

Outra coisa, se Caetano Veloso diz que “de perto ninguém é normal”, fecho com ele. Sigo em frente. Como se diz, suave na nave.

10 COMMENTS

  1. Quanta delicadeza!!! Histórias que fazem parte da minha vida! Obrigada por compartilhar. Adorei 👏👏👏👏😍😍😍

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