Vade retro, Coronavirus!

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Getty Images / Ron Nickel / Design Pics
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Para comemorar o Natal deste estranho ano a Carla, uma de nossas primas queridas, sugere soltar balões brancos carregados de sementes de árvores nativas. Nada de foguetes. O barulho assusta os cachorros e os fogos podem provocar incêndios. Gostei da sugestão. Festejar o nascimento do Menino Jesus em silêncio parece mesmo ser uma ótima ideia.

Se não podemos nos abraçar, reunir, confraternizar, que façamos silêncio, passaporte para uma profunda e necessária viagem interior. Em silêncio, nessa noite mágica, carregada de simbolismo, a gente renasça como pessoas melhores. Quem sabe, né?

Por falar em pessoas melhores, em boas intenções, láaaaa atrás, de quando a gente ainda era criança, um bando delas, Mamãe teve um daqueles seus insights magníficos: para nos desacelerar, mesmo que fosse por por poucos dias, a cada dezembro, assim que montava o presépio, Mamae depositava o Menino Jesus na manjedoura sem qualquer roupa. Nú, completamente nú. Na primeira vez o espanto foi geral. Choveram protestos:

-Tadinho do Menino Jesus! Desse jeito ele vai morrer de frio.

  • Mãe, cubra o coitadinho nem que seja com uma palhinha.

E, patati, patatá, um blá, blá, blá sem fim.

Mas, a ideia era essa mesma. Criar um clima de comoção e deixar a tarefa de cobri-lo por nossa conta. A cada boa ação , uma palha. No dia 24 mal se via o Menino Jesus. Ele continuava ali, mas dormia debaixo de camadas e camadas de palha. Nem com muito esforço dava pra ver uma daquelas mãozinhas erguidas, que pareciam clamar por colos e abraços.

Nós, os anjos da temporada, nos sentíamos os próprios guardiões do Menino Jesus. A representação perfeita da bondade e das boas intenções.

Mamãe não escondia o sorriso e desfilava em frente ao presépio satisfeita com o resultado da sua esperteza. Feliz, fazia concessões:

  • Mamãe, posso colocar mais uma palha? Tô achando o Jesus meio tristinho. É que choveu. Ele deve estar com frio.
  • Tá bom, minha filha. Pode, sim. Mas aproveite. Tá quase no Dia de Reis. Aí a gente vai ter que guardar o Presépio.

E assim ela, com maestria, estendia a trégua por mais alguns dias e dava sobrevida ao pacote de bondade.

Você deve estar ai todo saudosista, né? Natal faz isso com a gente. Escancara o nosso baú de memórias. Poderia ficar por aqui por horas descrevendo sobre o cheiro que vinha da cozinha, falando sobre o nosso encantamento na hora de abrir os presentes, da incredulidade com a figura do Papai Noel. Como ele passava pela chaminé? Como ele conseguia estar em todos os lugares ao mesmo tempo? Que roupa era aquela?

Tinha também o pic-nic do dia seguinte. Vovô Neném reunia a netaiada e nos conduzia à mesa construída por ele na beira do Rio Pará. Era lá que a cada manhã do dia 25 Vovô abria a cesta de Natal que todo dezembro vinha lá do Rio de Janeiro. Presente do Tio Chico. Muito chic. Tudo importado.

Meus avós, Mamãe e dois irmãos se foram há anos. Estão no colo do Pai. O Tio Chico, também. Não há mais cestas. A mesa está em ruínas. Não restou quase nada dela. Ao longo dos anos as roupas encurtaram e Papai Noel ganhou explicações plausíveis para todas as suas requisições. Fico aqui me perguntando:

  • Como é que ele conseguiu enganar a gente por tanto tempo? Só pode ter sido mais uma das artimanhas da Mamãe.

Ainda temos ceia e a casa decorada. Desta vez, com menos cadeiras na mesa de jantar. Papai replantou o jardim com “beijos do Zezé”. Era pra esperar o nosso pedaço da família que vive lá em Brasília. Mas, dessa vez, ele não virá. A missa também será para poucos. Tempos difíceis. Mas a gente vai se adequando.

Quanto aos presentes, finalmente capitulamos. Os adultos vão de amigo oculto. As crianças, sobrinhos e sobrinhos netos, estão ansiosas pelos presentes e encantadas com as luzes. E só. Acho que nem perceberam que o Menino Jesus está nú, esquecido na manjedoura. Outros tempos. Talvez nem saibam o que é e pra que serve uma manjedoura.

Vade retro, Coronavirus!

4 COMMENTS

  1. Que saudades daquele tempo. Saudades da mamãe. Saudades do vovô. Saudades do tempo normal. Esperando ansiosa pelo Natal de 2021. Parabéns pela crônica. Linda como sempre.

  2. Saudades de tudo isso. Pena que tudo isso não volta mais. Se toda criança soubesse que a infância não volta mais, não pensaria em antecipar a vida adulta.

  3. Nós aqui de Brasília, eu, Lulu,Sofia e Bela sentimos o baque de não poder ir pra Minas, passando por BH e chegando a Conceição do Pará, como fazemos todos os anos. A covid mudou nossaa vidas. Nesses 23 anos de Brasília, apenas duas vezes não fomos pra lá. Uma, quando a Bela estava numa UTI cuidando do seu coraçãozinho. E nesse 2020, ano muito difícil que nos tirou o prazer de abraçar e beijar nossos familiares tão queridos. Mas Deus há de querer que ano que vem possamos nos reunir e comemorar o verdadeiro amor, esse que existe entre pais, mães, filhos, tios, cunhados, sobrinhos, primos , e brindar à vida com os presentes e relembrar com amor dos que já se foram. Afinal, família e amor é tudo que há de melhor na vida. E feliz 2021!

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