As muitas janelas da saudade

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Foto - Art ship-Tim O'Brien -Site Photographizemag
Foto - Art ship-Tim O'Brien -Site Photographizemag

Li em algum lugar desse mundão cibernético que a saudade é a visita de quem está presente na gente. E num é que é mesmo?

E como um assunto puxa o outro, ainda outro dia, conversando sobre essa frase com a Lulu, minha irmã que mora em Brasília, fizemos um mergulho profundo na infância. Ela e um bando de nós – naquele tempo uma escadinha de 10 irmãos – me lembrou que criança, quando algo a afligia, o refúgio era a sala de TV da casa da nossa avó Cocota. Aquele lugar lhe inspirava segurança. A confortava.

  • Não era pela TV. Era pela rede que ficava debaixo da janela que dava para o quintal. Me aconchegava nela. Algumas vezes ficava de ladinho para acomodar a cabeça no colo do meu avô Nenen. Ele também sentava de ladinho, só que com as pernas cruzadas.

Daquele lugar delicioso e privilegiado, ela conta que avistava um quadro que ficava acima da geladeira.

  • Esse quadro me intrigava muito. Minha avó dizia que a cena retratava Jesus no Monte das Oliveiras.
  • Jesus foi para lá pra pensar nos problemas da humanidade, afirmava a minha avó cheia de sabedoria e crença.

Lulu recorda que essa explicação a intrigava e aí ela olhava de novo para a cena. Mas não se convencia. A menina daquela época não entendia como Deus se dava ao trabalho de pensar em problemas. Afinal, ele era Deus. Mesmo desconfiada da veracidade da explicação dada pela nossa avó, o quadro a confortava.

  • Passados tantos anos, hoje eu entendo que aquele Jesus aprisionado naquela moldura refletia e buscava soluções também para os “pequenos grandes problemas” que me afligiam naquela época. Talvez e também por isso eu me sentia segura ali naquele lugar. Mas não era só isso, ponderou a minha irmã. Gostava do ritmo imposto às horas.
  • Não bastasse esse quadro, aquela sala guardava outra relíquia. Na parede ao lado, junto à porta, ficava o relógio cuco. De hora em hora um passarinho saltava da portinhola e alertava que o tempo estava passando. O som do cuco se misturava ao canto dos passarinhos que vinha do quintal e à voz de minha avó na cozinha. O resultado era uma sinfonia que ainda hoje toca meu coração.

Sabe aquela coisa de família grande? Pois, é! Fiquei mexida com o relato da Lulu e lá fui eu dividir esse pedacinho da nossa história com a Denise e a Gyslaine. E dá-lhe cachoeira de lembranças. Todas tinham uma história pra contar.

  • Tinha também aquele quadro no corredor. Aquele de um tuareg cavalgando pelas areias do Saara com uma mulher nos braços, lembra a Gyslaine.

Ela se recorda que viajava na cena.

  • Será que ela está fugindo com ele? Será que estão vivendo uma história de amor proibida? E se ela foi roubada por ele. A verdade é que aquele quadro mexia comigo, confessa Gyslaine.

Se ela continua romântica? Muito. A Denise, ao contrário, não se lembrava desse quadro. O que não é de se espantar porque desde pequena já demonstrava interesse pelo insondável. Estava mais interessada em desvendar mistérios. Não por acaso maratona séries policiais por horas a fio.

  • Tinha também aquele quadro no quarto dos tios. Aquele que mostrava uma Santa segurando uma bandeja com dois olhos pousados. Era assustador, mas me intrigava muito. Será que ela matou alguém? Se matou, por que guardou os olhos?

Nada que o Google não resolva. E lá fui eu pesquisar para acabar com as dúvidas e provar a inocência dessa Santa descrita como a protetora da visão e dos olhos.

Diz o Google: “Santa Luzia (ou Lúcia) era uma virgem mártir cristã do século III. Por ordem do Imperador Diocleciano, um soldado arrancou-lhe os olhos e entregou-lhes numa bandeja. Nesse momento, surgem-lhe novos olhos, ainda mais bonitos. A santa foi decapitada.”

São muitas as lembranças. Como diz a Lulu, um tempo de paz de aconchego que não foi embora e não se perdeu nas brumas da infância. Está guardado e quase palpável dentro de todos nós.

7 COMMENTS

  1. Amiga que lindas lembranças e que me fizeram remeter às minhas e aos encontros de minha família, também numerosa, que chove de casos e ótimos momentos de infância. Parabéns.

  2. Prezada Gisele,
    Aguardo ansioso as sextas-feiras para me deliciar com suas crônicas. A de hoje me levou à casa de seus avós. Parabéns

  3. As muitas janelas da saudade. Não deixem de ler. As lembranças de minhas irmãs nessa crônicas, são minhas também. Saudades de minha infância de meus avós.

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