Serra da Canastra, santuário para proteger pato-mergulhão

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Pato-mergulhão, espécie criticamente ameaçada de extinção, tem na Serra da Canastra (MG) seu mais importante santuário. Fotos - Álvaro Fraga
Pato-mergulhão, espécie criticamente ameaçada de extinção, tem na Serra da Canastra (MG) seu mais importante santuário. Fotos - Álvaro Fraga

Ainda estava escuro e frio, muito frio, quando eu e a bióloga e guia de turismo Mariana Vabo chegamos à portaria principal do Parque Nacional Serra da Canastra, a oito quilômetros de São Roque de Minas.  Credenciada pelo ICMBio e profunda conhecedora da fauna da região, Mariana me guiava pela segunda vez.  Meu objetivo: ver e fotografar o pato-mergulhão (Mergus octosetaceus), espécie criticamente ameaçada de extinção e que encontra na Canastra o seu maior e mais importante santuário.

O projeto de registrar ave tão especial começou no ano passado. Passei o réveillon em São Roque e durante três dias andei atrás do pato-mergulhão.  Era a época errada. Chovia muito e não tive sucesso. Consegui registrar outras espécies e voltei feliz, mas o pato não saiu do meu foco. Belo e raro, o Mergus octosetaceus está na lista das 10 aves aquáticas mais ameaçadas do planeta. De acordo com estimativas dos especialistas, há menos de 250 exemplares da espécie na natureza, metade dos quais na Serra da Canastra.

Decidi retornar neste ano, numa época mais propícia e seca para ficar frente a frente com a espécie.  Fotografar o pato é o sonho de nove em cada 10 observadores de aves, devido à raridade e ao perigo que a espécie enfrenta. Ela só tem registro no Brasil e é considerada extinta na Argentina e no Paraguai, onde também era encontrada.  Além da Canastra e da cidade mineira de Patrocínio, há pequenos grupos em Goiás e no Tocantins.

A cada curva, uma novidade

Rodamos pouco tempo após entrar no parque e o sol começou a dar as caras. Apesar do frio, não ventava, e as aves, para minha satisfação, estavam bastante ativas. Canário-do-campo, várias espécies de andorinhas, chopim-do-brejo, bico-de-veludo, a cada curva uma novidade. Com um olho no volante e outro na natureza, a guia Mariana me mostrava as aves. Se fosse algum pássaro mais raro, que eu ainda não havia registrado, fazia a foto apenas abrindo a janela do jeep, se fosse possível.  Se necessário, descia do carro para fazer o registro.

Nesse anda e para, passamos pela nascente do Rio São Francisco e nos dirigimos à parte alta do parque. Dos dois lados da estrada, grandes aceiros feitos pelos brigadistas para evitar que incêndios consumam o parque. Neste ano, com mais recursos em caixa, o ICMBio pôde, finalmente, contratar uma brigada permanente, que trabalha o ano todo,  objetivando mais sucesso na prevenção e combate ao fogo, a maior ameaça à vida na Canastra. Mas em agosto, um grande incêndio, entre São João Batista da Canastra e Sacramento, destruiu mais de 20 mil hectares de vegetação da área conhecida como Chapadão da Canastra.

A vegetação nos aceiros é mais tenra e atrai inúmeras espécies de aves e mamíferos. Famílias de veado-campeiro (corças, machos e jovens) são vistas se alimentando do capim macio ou descansando. Tamanduás também são avistados. Entre as aves, carcará, primavera, noivinha e galito (espécie ameaçada de extinção)  voam em meio a arbustos de pequeno porte e gramíneas que brotam em todo lugar. Mesmo no inverno, com o tempo seco e as fontes de água com volume reduzido, a abundância de vida selvagem na Canastra é de encher os olhos.

O encontro

O pato-mergulhão é uma espécie monogâmica e vive com um único parceiro por toda a vida
O pato-mergulhão é uma espécie monogâmica e vive com um único parceiro por toda a vida

Pouco depois das 10h nos aproximamos do ponto do Rio São Francisco onde vive um casal de pato-mergulhão. Com binóculos, Mariana avista as aves e me avisa. Desço do carro e me aproximo devagar, com a câmera apontada para o local onde macho e fêmea estão.  A cada passo, disparo o obturador, com medo de que os patos possam voar e me deixar sem uma mísera fotografia sequer.  Aí vem a surpresa: tranquilo, o macho do casal nada enquanto a fêmea toma sol em uma pedra. Não se assustam com a minha presença e continuam a tocar a vida em um local de águas rápidas e cristalinas.

Ouso um pouco mais, atravesso um trecho seco do São Francisco e chego mais perto, sem acreditar no que acontece. Estou próximo, posso observar os detalhes das aves. O macho, com um penacho exuberante, a plumagem brilhante e molhada, o bico com dentes serrilhados. A fêmea, mais discreta, mas também muito bonita. Ambos parecem bem de saúde. Segundo Mariana Vabo, já era período de reprodução e os filhotes deveriam nascer logo.

Pura adrenalina

Finalmente, eles voam. O macho vai à frente, chamando a fêmea, que o segue em um voo mais baixo e pousa um pouco mais distante, já em outro trecho do São Francisco. Me aproximo de novo, mas desta vez tudo é diferente do primeiro contato. Ela bate as asas e se vai, sumindo numa curva do rio. Só então a carga de adrenalina faz efeito. Fico quase sem ação, ainda sem entender como tudo foi tão rápido e relativamente fácil. Sei de relatos de muitos observadores de aves que passaram dois ou três dias tentando avistar o pato-mergulhão, sem sucesso. Felizmente, o bicho foi com minha cara e me recebeu muito bem.

Missão cumprida, pegamos a estrada para voltar a São Roque de Minas, antes da tarde chegar. No carro, enquanto fotografo aves que encontramos pelo caminho, tenho uma aula completa sobre o pato-mergulhão, sua importância para a preservação do cerrado, as ameaças que enfrenta e seu comportamento, ainda muito pouco conhecido, pois as dificuldades para o desenvolvimento de pesquisas são grandes, especialmente a falta de recursos e tecnologia para monitorar a espécie.

Mariana Vabo fala com desenvoltura e conhecimento sobre o Brazilian Merganser, nome pelo qual os observadores de aves de outros países se referem ao pato. Por sinal, a presença de bird watchers norte-americanos, europeus e australianos na Serra da Canastra é cada vez mais frequente. Todos querem ver a espécie, o Santo Graal do cerrado brasileiro. Chegamos a São Roque, almoçamos e depois vou para o hotel.  A ficha ainda não caiu. Para confirmar que consegui mesmo registrar a ave, dou uma última olhada no cartão onde as fotos estão arquivadas e, por segurança, o guardo em local protegido. Enfim, a certeza: “meninos, eu vi o pato-mergulhão”.

Embaixador emplumado

Em março, o Ministério do Meio Ambiente anunciou que o pato-mergulhão passaria a ser oficialmente reconhecido como Embaixador das Águas Brasileiras. Mais que uma simples denominação burocrática, o título visa alertar sobre a importância de proteção da espécie e assegurar a preservação dos biomas onde ela vive. A iniciativa do governo federal também incentiva a captação de recursos para estudos sobre o comportamento da ave, do qual se sabe muito pouco.

E por que preservar o pato-mergulhão é fundamental para a natureza no Brasil? Porque a espécie, extremamente exigente em termos de qualidade de água e alimento, só sobrevive em locais onde o equilíbrio ambiental não foi afetado. Ela só é encontrada em águas límpidas, com matas ciliares preservadas e abundância de pequenos peixes. É o que os biólogos chamam de bioindicador. A presença do Brazilian Merganser é sinal de que o meio ambiente está intacto e que não há riscos iminentes à natureza.

As estimativas de que cerca de 140 indivíduos hoje vivam na Serra da Canastra, população mais relevante da espécie no Brasil, comprovam que a unidade de conservação, apesar de incêndios e desmatamento, tem conseguido garantir a sobrevivência do pato-mergulhão. Por isso, muitas iniciativas de preservação da espécie estão direcionadas para a Canastra. Se a unidade de conservação continuar protegida, assegurar a sobrevivência da ave será uma tarefa com mais chances de sucesso.

Homem é principal ameaça

O homem é a principal ameaça ao pato. Mariana Vabo explica que, na natureza, a ave sobrevive bem aos ataques de predadores como lontras, guaxinins, iraras, quatis e outros mamíferos. Uma das estratégias é nidificar (construir ninhos) em locais de difícil acesso, onde ovos e filhotes estão a salvo dos inimigos naturais. Gaviões, falcões e águias também costumam se alimentar do Mergus octosetaceus, mas nada em quantidade que possa por em risco a reprodução da ave. O grande problema é o ser humano, principalmente porque as atividades antrópicas destroem o habitat da espécie.

O Instituto Terra Brasilis de Desenvolvimento Socioambiental, que atuou em parceria com a Petrobras no projeto “Pato aqui, água acolá”, voltado para a preservação do pato-mergulhão na Canastra, lista como as principais ameaças à espécie a destruição de matas ciliares, a degradação das margens e dos leitos dos cursos d’água.  O uso de pesticidas nas pastagens e lavouras que são carregados para os cursos d’água. A mineração, que impacta diretamente os cursos d’água e, consequentemente, sua fauna associada. A construção de barragens, que modificam profundamente os ambientes aquáticos, e as atividades esportivas mal planejadas realizadas ao longo dos cursos d´água.

De acordo com o ICMBio, entre as décadas de 1940 e 1950, o pato-mergulhão foi considerado extinto no Brasil, mas depois populações espalhadas pelo Sudeste, Centro-Oeste e Sul do país foram registradas. Já há tentativas de reprodução em cativeiro. Em 2017, nasceram quatro filhotes gerados no Zooparque Itatiba, interior de São Paulo. O processo foi lento. Primeiro, foram coletados ovos na natureza. Depois, os ovos foram incubados e os primeiros patos nasceram. Em seguida, esses exemplares botaram os ovos de onde vieram os filhotes nascidos no ano passado.

Espécie monogâmica

Sobre o comportamento da ave na natureza ainda se sabe muito pouco. A espécie é monogâmica, e vive com um único parceiro por toda a vida. Entretanto, se um dos integrantes do casal morrer, o outro pode buscar um novo companheiro. O alimento principal do pato-mergulhão é o lambari. A ave só vive onde a presença desse peixe é abundante. Exímio caçador, com ótima visão e dentes serrilhados em toda a extensão do bico, o Brazilian Merganser dá mergulhos certeiros para capturar suas presas. Daí o nome pato-mergulhão.

Não se sabe ao certo o tempo médio de vida da espécie. Há registro de um pato que viveu por cinco anos. A bióloga Mariana explica que os estudos comportamentais ainda são imprecisos, pela dificuldade de monitoramento. Pesquisadores chegaram a anilhar alguns filhotes na Serra da Canastra. Entretanto, esses indivíduos deixaram os ninhos e nunca mais foram localizados, interrompendo a pesquisa. O uso de microchips nas anilhas seria a solução, mas trata-se de uma tecnologia cara e de difícil implementação.

A espécie atinge a maturidade reprodutiva após os dois anos de vida e põe de quatro a oito ovos por ano. Os filhotes ficam na companhia dos pais por um período de seis a oito meses, e depois são expulsos e devem seguir a vida por conta própria, em outro local. Bastante territorialista, a ave não admite outros indivíduos na área onde vive. Estima-se que cada casal precise de um perímetro de cerca de oito quilômetros quadrados para sobreviver e procriar de maneira adequada.

 

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