Minha vida de menina

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Imagem - Pixabay
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“Ontem, Quarta-Feira das Trevas, Iaiá Henriqueta leu em voz alta a Paixão de Cristo para nós todos ouvirmos.  Como era dia de bacalhau, Vovó mandou abrir duas garrafas de vinho do Porto para o jantar. Todos comeram e beberam a farta; Tia Carlota bebeu mais que as outras e ficou com o nariz vermelho como lacre e com os olhos pequeninos. Depois do jantar fomos todos para o Palácio confessar.

Nós, meninas, fomos proibidas de confessar com o Senhor Bispo porque ele pergunta muita coisa que a gente não entende e meu Pai disse que é um absurdo mamãe nos deixar confessar com um velho caduco. Ele já está bem velhinho. Como no Palácio há muitos outros padres, Mamãe escolheu para nós o Padre Florêncio. Ele é muito bom e nos dá penitência pequena, mas a gente sai cansada do confessionário de tanta história de santo que ele aproveita para contar e aconselhar a gente a imitar. Como se isso dependesse da gente. Eu regulo por mim; tenho inveja das pessoas boas e santas, mas não posso deixar de ser o que sou.

Tia Carlota foi confessar com o Senhor Bispo. Ele não deixa ninguém dizer os pecados; ele mesmo é que quer perguntar. Tia Carlota diz que estava muito tonta e que por isso gostou do Senhor Bispo perguntar para ir só respondendo. Ele começou:

– Você fala mal da vida alheia?

Ela respondeu:

– Muito, Senhor Bispo.

Perde missa aos domingos?

– Muito, Senhor Bispo.

– Deseja mal aos outros?

– Muito, Senhor Bispo.

– Você furta?

– Muito.

Então ele disse:

– Você está muito bêbada. Vá curar essa mona e volte. 

Nós todos rimos a não mais poder quando Tia Carlota contou a confissão dela.”

Esse relato poderia perfeitamente ser um dos causos da minha família grande e barulhenta. É a nossa cara. Por aqui o que não falta é tia bebendo além da conta. Esse é um recorte do romance “Minha vida de menina”. Estou relendo agora. A primeira vez foi na adolescência. Me encantei. E lá se vão mais de quatro décadas. O livro escrito por Helena Morley retrata como era o dia a dia de uma adolescente na Diamantina do final do século XIX.

O verdadeiro nome de Helena Morley é Alice Dayrell Caldeira Brant. Helena é o seu pseudônimo. Neta de um inglês, ela nasceu em 1880 em Minas Gerais, em Diamantina, onde escreveu um diário entre os anos 1893 e 1895, período marcado pela decadência. Naquela época as jazidas já tinham se esgotado, a pobreza tinha aumentado e a cidade estava ficando abandonada.

É neste cenário que a autora descreve a sua rotina dos 13 aos 15 anos.  Mas só aos 62 resolveu resgatar suas memórias para contar aos netos. A obra rendeu elogios. Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa consideram que este livro já nasceu como um clássico.

Na obra, a então adolescente narra com humor e ironia as suas experiências cotidianas, muitas delas relacionadas à comida, revelando aspectos da cultura, da sociedade e da família da época.

Entre as muitas citações gastronômicas, há referências às festas religiosas e às comemorações familiares. “Hoje é dia de São João. Fizemos uma fogueira enorme no quintal e assamos batatas-doces, milho verde e pinhões. Foi muito divertido. Ontem fomos à casa de tia Aurélia para o jantar. Ela fez um banquete com frango ao molho pardo, tutu de feijão, couve refogada, angu e torresmo. Tudo muito bem temperado e saboroso. Eu comi tanto que quase passei mal. Hoje é o aniversário de mamãe. Papai mandou fazer um bolo de chocolate com cobertura de creme e morangos. Ficou uma delícia. Mamãe ficou muito feliz e agradeceu a todos pelo carinho. Fui à casa de Madge para tomar chá com ela. Ela me ensinou a fazer uns biscoitos ingleses que se chamam scones. São muito fáceis de fazer e ficam crocantes por fora e macios por dentro. Ela me disse que se come com manteiga e geleia. Hoje é o dia da festa do Divino. Fomos à igreja assistir à missa e depois fomos ao salão paroquial para almoçar. Lá tinha muita comida típica: canjica, pamonha, bolo de fubá, doce de leite, pé-de-moleque, cocada, paçoca e quentão. Eu provei um pouco de cada coisa e adorei.”

Além dessas, há muitas outras referências à culinária, um retrato de como a comida era importante para a vida social, familiar e religiosa da menina Helena Morley. Em Minas ainda é assim. Nossa casa é um bom exemplo. Como já contei em muitas outras oportunidades, por aqui tudo é permeado e regido pelas refeições. E na nossa mesa o que não falta é ancestralidade. Herdamos o jeito de fazer das cozinhas das fazendas e dos ranchos dos tropeiros. Ao correr os olhos pelas páginas do livro, um presente do Tio Valter para a Mamãe, volta e meia me vejo na cozinha da Diamantina do fim do século XIX. Os pratos sofreram pouca ou nenhuma mudança.

Mas, além de mim, há muita mais gente que se identifica com “Minha Vida de Menina”. Uma delas é a lindeza da Juliana Duarte, cozinheira, historiadora e pesquisadora da história da gastronomia mineira.  Lembra do bacalhau lá do início do texto? Pois, então! A Ju, leitora confessa da obra de Helena Morley, inspirou-se nela para criar um dos pratos mais famosos do restaurante “A Cozinha Santo Antônio”.  A versão da chef é o prato “Minha vida de menina”. Nele, além do peixe, vai uma rodela de abóbora grelhada, angu de milho Criolo. Tem também um “traguinho” na caneca de feijão-preto. Uma cachacinha sempre cai bem, né? Vai que você precisa confessar e o padre não é lá muito seu chapa e ai…

6 COMMENTS

  1. Quando comecei a ler o texto, achei que se estava falando das meninices e comidas de minha família . Impressionante como a gastronomia mineira não perdeu sua identidade com o passar do tempo. Adorei todo o texto. Prazeroso de ler e rico de informações. Parabéns

    • Bom dia, Maria Luiza ! Relendo o livro tive a mesma sensação. Obrigada por ler os meus escrito. Vc tornou a minha manhã de sexta mais feliz. Obrigada. Beijo pro cê.

  2. Eu li e reli o livro Minha Vida de Menina tantas vezes, que me tornei amiga “íntima” de Helena. Quase decorei o livro. Virou um filme, muito bom, bastante fiel, que eu vi no Cine Clube Savassi (quem frequentou?), mas não me lembro quem dirigiu, nem os atores.

    • Olá, Fátima! O filme ganhou vários prêmios. O elenco é o seguinte: Ludmila Dayer como Helena Morley; Daniela Escobar como Carolina; Dalton Vigh é Alexandre; Maria de Sá é Teodora; Camilo Bevilacqua é Geraldo; Lolô Souza Pinto como tia Madge; Benjamim Abras como Teodomir e Lígia Cortez como Iaiá.
      Abraços.

  3. Que interessante, não conheço esse livro, fiquei com muita vontade de ler.Obrigada por compartilhar tantas informações! Suas crônicas sempre me agradam! ☺️

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