As cartas que ainda não mandei

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Imagem - Pixabay
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Há poucos dias vivi um momento precioso. Sem combinar, sem aviso prévio, pude, por mais de duas horas, conversar com Tio Walter. Aos 95 anos continua lúcido e lindo, uma réplica sem tirar nem pôr do Vovô Nenê. Ele é o primogênito numa família de sete irmãos, entre eles, minha mãe.

E era com ela que Tio Walter trocava cartas semanais. Escrevia com elegância e sutileza sobre o cotidiano. Contava, inclusive, sobre o que naquele tempo era moda nas vitrines da Afonso Pena. Cintura bem marcada, saias rodadas até os tornozelos, sapatos de salto e acessórios como luvas e chapéus. Era ele quem escolhia os tecidos e mandava para a Vovó Cocota e para a Mamãe.

Com a mesma elegância contava sobre os livros que estava lendo. Detalhava também sobre a rotina no Banco da Lavoura e sobre a família que mais tarde formaria com a Tia Beatriz. As cartas eram, na verdade, a forma com a qual se mantinha ligado à família que deixou bem menino para tentar a vida em Belo Horizonte, onde se formou em Direito, fez carreira no banco, casou e tornou-se pai.

Mamãe nem sempre respondia. Mas, quando o fazia relatava, com apuro na linguagem, detalhes a vida em Conceição do Pará, naquele tempo um oásis de tranquilidade, lugar em que o tempo passava bem devagar. Quase uma tradução do poema de Drummond: “Casa entre bananeiras, mulheres entre laranjeiras, pomar amor cantar. Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar … as janelas olham. Eta vida besta, meu Deus!”

O que era uma espécie de diário e link com a família virou um hábito. Tio Walter ainda hoje escreve cartas. Em Divinópolis, onde morou por um tempo, era conhecido como o único missivista (ops!) da agência de correios do bairro. Ele conta que quando botava o pé na soleira da porta, a funcionário já o saudava com um sorriso estampado no rosto:

  • Seja bem-vindo, Senhor Walter, o último correspondente do Brasil.

Recentemente o Correio divulgou números que justificam a saudação entusiasmada da funcionária da agência. De acordo com a empresa, o volume de correspondência entre pessoas físicas diminuiu cerca de 70%. Se os boletos chegam por e-mail, a entrega de encomendas aumentaram por causa do crescimento do comércio on line.

A realidade confirma a frieza dos números. Hoje, poucos mantém esse hábito. Tio Walter talvez seja mesmo uma raridade. Ah, ele, além de escrever as cartas, numera todas. Revelou que já são mais de duas mil missivas. Talvez essa seja o embrião de um livro sobre a vida, sobre a família e amigos. Vai saber, né?

Fiquei entusiasmada com a conversa. Gostaria de resgatar esse tipo de comunicação. A amiga e jornalista Bianca Alves não perdeu tempo e já botou a mão na massa. É dela um projeto que une por cartas amigos que se perderam no tempo. O primeiro contato é feito pelas redes sociais da Bianca. Ai um fica sabendo do outro, trocam endereços e a conversa por escrito começa. Coisa linda, né? Deixar a emoção fluir na ponta da caneta é algo que mexe comigo. Esse exercício é como diz a querida Cris Lisboa, “é ter olhos de palavras e deslocar o coração do peito até a pontinha dos dedos”.

A Cris Lisboa, escritora e professora de escrita criativa, um ser que adoro e que está por trás do blog Go, Writers, diz que “as palavras são que nem caravelas. “A gente usa pra navegar. A palavra faz de quem escreve ponto de partida.” Cris contou em uma entrevista a experiência de uma aluna que, como forma de exercício, criou um blog em que escrevia cartas para ela mesma. Foi como uma catarse.

Escrever para si mesmo não é algo tão incomum assim. Em um artigo escrito pelo Caio Bucker, o escritor e filósofo conta que quando jovem o ator Tonico Pereira tinha o hábito de escrever a noite. Ao terminar, lacrava o texto com o maior carinho. Ao acordar, abria as cartas e lia em primeira mão. Detalhe: Tonico nunca usou o serviço dos Correios. As cartas eram pra ele mesmo. A escritora Clarice Lispector também se valia das cartas para se comunicar com outros escritores, artistas e familiares. No caso dela, todas estão no livro “Correspondências”.

Caio acredita que a pandemia pode impactar num movimento contrário às redes sociais e assim a carta escrita ganhar força. Ele diz que com o isolamento social marcado pelo home office, reuniões pelo zoom e festas virtuais, há quem tenha se cansado das telas. “Muitos se voltaram para as cartas e se uniram em projetos como “Querido Alguém” e “Envelope de Papel”, movimentos que, segundo ele, “visam ligar corações que querem espalhar palavras por ai com pessoas que precisam delas, indo pela contramão das comunicações digitais, tão impalpáveis e instantâneas.”

Como você pode ver o Tio Walter e a Bianca Alves não estão sozinhos nesse movimento retrô, guiado pelo coração que se move na ponta da caneta. O Caio ainda recomenda:

  • Vai, começa escrevendo pra você mesmo. É só não postar.

Fica a dica.

8 COMMENTS

  1. Bons tempos! Foram muitas cartas escritas e recebidas. A alegria era tanta quando o carteiro chegava e o coração quase explodia de felicidade e ansiedade.

  2. Gisele querida demais, manda-me seu endereço in box que lhe escreverei uma carta. Será daquelas com envelope, selo, carimbo e tudo. E se eu estiver muito inspirada, você poderá contar aqui sobre essa conexão. Eu sei o que sinto e sei que você também.

  3. Gisele, quanta emoção! Sempre adorei escrever cartas! Mas, as minhas sempre foram cartas de amor! Escrevia para o Carlos, enquanto namorados, toda semana (duas vezes na semana)! Às vezes, ele estava aqui comigo no final de semana e uma carta estava seguindo para ele ler na segunda! Que bom poder falar sobre isso!! 😊😊
    Mesmo casados, escrevia bilhetes e colocava pra ele ver… bilhetes amorosos e até bilhetes de desculpas, de explicações para os desentendimentos (ele era muito teimoso para escutar).
    Ainda tenho algumas cartas que escrevia, minha sogra guardou e eu recebi como preciosidade!!
    Não recebia respostas em forma de cartas, mas muitas vezes o retorno era tão bom que superava a falta delas!!
    Obrigada, Gisele, por me fazer recordar época tão mágica e feliz!! 👏🏻👏🏻👏🏻❤️❤️❤️🌹

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