Nos últimos dias as redes sociais entraram em surto. Foi só o CEO (ops! presidente) do I Food dizer que em dez anos ninguém mais irá cozinhar pra todo mundo sair em defesa da comida. Ele até tentou se explicar. Mas a questão é que o bicho pegou.
A indignação tomou conta do meu feed. Todas as celebridades e não celebridades da gastronomia saíram em defesa da comida, do fazer, do conhecimento ancestral. E eu junto. Não consigo imaginar uma casa sem fogão aceso, sem cozinha a mil por hora. É ali, na trempe do fogão, que se esconde a alma de uma família.
Na nossa cozinha sempre foi assim. Antes da reforma já tivemos três. Em algum momento, acredite, todas funcionaram. Hoje, são apenas duas. Por hora, já está de bom tamanho. Limpar dá um trabalho, né?
Mas voltando ao xis da questão, esse presidente certamente nunca deixou o arroz grudar no fundo da panela só pra ver um sorrisão estampado no rosto do pai. O nosso querido amava aquele queimadinho que ficava no fundo da panela. Os entendidos dirão que o nome correto é socarrah, prato famozérrimo da moderna gastronomia espanhola. Pra nós é só algo que Papai amava e a gente deixava acontecer pra agradá-lo.
Denise Godinho, criatura encantadora por trás do blog “Capitu vem para o jantar”, me traduziu quando disse que a afirmação do presidente do I Food ignora que cada prato conta a história de uma sociedade, de um povo, dos recursos, das derrotas e das suas conquistas nas suas trajetórias. Conta a nossa história, a história da nossa comida, as receitas que foram passando de geração em geração. Foram as comidas que criaram as memórias afetivas que tornam a gente quem a gente é.
Toda essa discussão me levou a resgatar uma crônica de Rubem Braga. No texto em questão ele confessa o desejo de ser cozinheiro, mas que por não ter esse dom escreve como quem cozinha. E explica: “o cozinheiro cozinha pensando no prazer que sua arte irá causar naquele que come. Eu escrevo pensando no prazer que o meu texto poderá produzir naquele que me lê”.
Voltando ao delicioso blog da Denise, literatura e comida têm tudo a ver. Não são raros os escritores que recorrem à comida para trazer vida aos personagens e doçura aos poemas. Quer um exemplo?
Em um de seus versos, Mário Quintana diz sonhar com poemas que, como a comida, tragam prazer ao corpo:
“Eu sonho com um poema
Cujas palavras sumarentas escorram
Como a polpa de um fruto maduro em tua boca,
Um poema que te mate de amor
Antes mesmo que tu lhe saibas o misterioso sentido:
Basta provares o seu gosto…”
Um dos meus irmãos que não está nem aí pra essa polêmica toda – tem outros interesses – surpreendeu-se quando confessei repetidamente o desejo de cozinhar um arroz com jiló. Bem molhadinho, sabe?
– De onde você tirou essa ideia, Gisele? Aposto que é alguma invencionice que você viu na internet.
Não foi, não. Veio lá do fundinho da memória afetiva. Vovó fazia e era delicioso. Tão bom como o capitão que ela amorosamente montava na palma da mão quando um dos netos estava febril.
Uai, você não sabe o que é capitão, não? Ihh, acho que você não teve infância. Capitão é arroz com feijão, couve e farinha bem misturadinhos no prato. Depois de modelados como bolinhos vão direto pra boca. Se forem feitos pela avó ou pela mãe, huuummm, aí então é que ficam mais gostosos ainda. Só de lembrar a minha boca está aqui, cheia de água que nem um ribeirão em dias de tempestade.
Se eu for citar aqui todas as comidas que me levam a viajar sem escalas para o tempo da delicadeza essa nossa conversa não vai ter fim. Por isso, por hora vou me conter e deixar você correr para cozinha preparar nem que seja um chá com torrada. Que é pra esquentar a alma e desacelerar o coração.
Ah, e antes que você me entenda mal, eu não sou contra delivery, do tipo que odeia comida em domicílio. Até compro. Aqui em Conceição do Pará tem uns ótimos. Em BH, nem se fala. A questão é que meu coração mora na cozinha. As razões você já conhece. Por tudo isso desejo que a previsão do tal presidente esteja errada. Porque, como diz a Denise Godinho, se isso acontecer a gente vai renunciar a uma identidade cultural histórica e afetiva muito importante. “Afinal, cozinhar nos tornou humanos e isso precisa ser preservado”.
Todo mundo vai parar de cozinhar… sei não, mas que o jeito de cozinhar vai mudando com o tempo, isso vai. Muita coisa hoje vai sendo substituída por preparados industriais, em nome da praticidade. Veja os vídeos da Rita Lobo e me diga se ela também não recomenda usar tomates pelados, grãos pre cozidos enlatados, coisas desse tipo. Mas o essencial, o ato de ir para beira do fogão e fazer aquilo que só a gente sabe, isso não muda
Sobre o capitão: mamãe era, geralmente, a última a sentar pra comer. Eu e minha irmã, as caçulinhas, já de barriga cheia, frequentemente “batíamos ponto” e devorávamos uma boa parte da comida dela, em forma de capitão. Vê
Linda e informativa crônica, Gisa!!!
Parar de cozinhar, jamais!!!Não acredito que isso vá acontecer. Pelo menos “nao” com determinadas pessoas como nossa queridissima Gisele Bicalho.😚