Esta coluna, desde sua primeira edição, tem como premissa indicar semanalmente três livros. Seja de um autor, seja de um tema, a trinca busca oferecer títulos que fogem da lista dos mais vendidos e das sugestões óbvias.
Vou me permitir nesta semana e nas próximas escrever sobre apenas um livro, mas seguindo a linha mestra deste espaço: uma obra que mereça ser (re)descoberta.
Neste momento em que a sombra da repressão militar paira sobre o Brasil, escolhi um livro de um autor que conseguiu expor os traumas de uma ditadura com vigor.
“A Quem de Direito”, de Martín Caparrós, trata da herança que a violência da ditadura deixou na Argentina.
É uma leitura importante e essencial para estes tempos.
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Começa com uma cena de crime. Um padre é assassinado no povoado de Tres Perdices, no que poderia se chamar de Argentina profunda. Ninguém entende.
É o início de “A Quem de Direito” (Companhia das Letras, 2011), romance de Martín Caparrós, que capta um momento da história argentina para revivê-lo anos depois.
Carlos era um militante na época selvagem da ditadura militar (1976-1983), que perdeu a mulher grávida e o filho, provavelmente em uma sessão de tortura. Anos depois, solitário, sem perspectivas e doente, vai reviver aquele período e, despertado por ex-companheiros, partir para a busca da verdade sobre a morte da mulher.
Caparrós traça um perfil quase melancólico da geração que enfrentou os militares, por motivos ingênuos, idealistas ou egoístas — ele não toma partido, apenas aponta para onde aquela geração caminhou na época, quais eram as motivações e suas consequências.
Carlos encontra ex-militares, para descobrir que talvez haja vítimas além dos civis. Caparrós não trata de quem morreu, mas sim de quem está vivo e tem que conviver com o que o passado gerou. Não há acerto de contas. A ficção que Caparrós criou poderia muito bem ser real, e talvez seja. Seus personagens são palpáveis, assim como seus dramas e dilemas.
Dessa forma, “A Quem de Direito” surge como um daqueles livros fundamentais para entender não uma geração, mas sentimentos como vingança e raiva, tendo como pano de fundo a história. O tom melancólico que permeia o protagonista revela a sensação de sonho perdido, por mais ingênuo que possa soar. Para Caparrós, não importa, era o que aqueles jovens pensavam e ansiavam.
Trecho
“Mas acho que vê-la tão violenta, tão segura, era uma coisa que me excitava. Gostava – acima de tudo – que ela fosse capaz de afirmações tão contundentes, de uma solidez inverossímil. Eu não conseguia mais: já fizera muito isso, pagara um preço alto demais. Tentei dizer a ela que não fora só a derrota: que fora sobretudo o desaparecimento das ideias pelas quais lutávamos. Que agora os glorificadores daqueles anos querem reciclar e revender aquelas ideias transformadoras em postulados gerais – a justiça, a igualdade, a democracia, os famosos direitos humanos -, mas nós não lutávamos por essas coisas: lutávamos porque estávamos convencidos de que só seria preciso um empurrãozinho para que o socialismo – o desaparecimento dos ricos, o governo dos trabalhadores, tudo para todos – se instalasse, que era coisa de dias, de uns poucos anos no máximo. Estávamos convencidos de que o amanhecer estava logo ali: era noite e lambuzávamos os braços com filtro solar.”
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