Psiquiatra relata experiência no Médicos sem Fronteiras

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A psiquiatra brasileira atua pelos Médicos Sem Fronteiras

Participar da organização mundial Médicos Sem Fronteiras é uma das atividades mais duras e, ao mesmo tempo, recompensadoras que possa existir. Afinal, viajar para países miseráveis, não raro em conflitos e guerras civis, obriga ao voluntário a ter espírito forte para trabalhar em condições nem sempre ideais.

É o caso da psiquiatra brasileira Carolyne Cesar, que atua pelo MSF e atualmente se encontra no Sudão do Sul. Ela está escrevendo um diário para o site da organização, em que relata suas atividades no país africano e conta como é sua interação com os refugiados.

Leia a seguir trechos desse diário.

“Havia ali uma coisa em comum: esperança”

Os retornos se sucederam, em cada um deles havia diferentes histórias e diferentes estados. Recebíamos toda uma variedade: idosos, jovens, mulheres, homens, crianças, gestantes. Gente que trazia muita coisa, gente que trazia nada; mas de alguma forma, havia ali uma coisa em comum: esperança, ainda que para alguns mais e para outros menos. Os retornos coincidiam com um clima de maior segurança. As pessoas se sentiam mais seguras e, por isso, voltavam. Era possível ver e sentir isso nas ruas, aquelas mesmas ruas ganhavam cada vez mais movimento. Se, por um lado, receber os retornos apontava para um possível momento de paz, a chegada dos deslocados internos em Mukaya (a alguns quilômetros da cidade de Yei) apontava para a direção oposta, não muito longe dali.

Refugiados e deslocados internos são pessoas que fugiram da guerra ou de alguma perseguição, sendo que os deslocados internos não atravessaram a fronteira do país em busca de segurança; eles continuam no país natal. As razões para permanecerem são inúmeras, desde a vontade de ficar perto da família e a esperança do fim do conflito, até a falta de recursos econômicos para atravessar a fronteira. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) coloca os deslocados internos entre os grupos de pessoas mais vulneráveis. Ao permanecerem no país, permanecem sobre a proteção do governo, mesmo quando o governo foi o responsável pelo deslocamento. Além disso, muitas vezes essas pessoas ainda se mudam para áreas onde é mais difícil receber ajuda humanitária.

Em Mukaya, a maioria das pessoas havia andado pelos arbustos, por pelo menos dois dias – sem comida, sem água e sem descanso. Ao contrário dos retornos, não havia aqui tanta variedade: a exaustão era unanimidade. Contavam histórias semelhantes: casas queimadas, roubadas ou destruídas, perda de entes próximos, deixar para trás tudo em busca de um pouco de paz.

Havia ali uma maioria de idosos, mulheres e crianças. Os idosos traziam histórias de um acúmulo inacreditável de perdas e alguns nem eram idosos, embora a aparência apontasse para isso. Algumas famílias estavam separadas. Algumas pessoas diziam ter testemunhado assassinatos. As crianças faziam desenhos que muitas vezes traziam rostos sem expressões faciais e outras tantas vezes brincavam reproduzindo conflitos vividos. Uma gestante havia dado à luz nesse percurso e outras tantas haviam atravessado esses arbustos. Era ali que eu ouvia pessoas muito cansadas de uma guerra e todos os seus desdobramentos, mas que mesmo exaustas, insistiam em persistir. Continuamente. E mesmo quando diziam não saber o que fazer, sabiam o mais importante: que era necessário prosseguir. E era por essa razão que estávamos ali.

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Essa é a segunda parte do diário da psiquiatra brasileira. A primeira está disponível no site do MSF.

Para ler mais ações voluntárias e que buscam melhorar a vida das pessoas, veja a nossa seção Rede do Bem.

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