Divertida, dedicada e desbocada. Conciliar essas características 3 D tem sido receita de sucesso para a gamer mineira Raquel Ferreira, mais conhecida como SuriBH. Ao trocar o cenário competitivo do esporte virtual pelo de entretenimento, a jogadora é, hoje, uma das promessas do milionário mercado de transmissões ao vivo de jogos eletrônicos do País.
O esporte eletrônico (e-sport) que, a partir de 2022 fará parte das Olimpíadas, obteve um faturamento global, em 2016, de US$ 100 bilhões, envolvendo 2 bilhões de jogadores em todo o mundo. Esse montante engloba todas as plataformas disponíveis: consoles, smatphones e computadores pessoais (PCs).
No Brasil, o mercado de games eletrônicos gerou US$ 1,5 bilhão em 2016 e a expectativa do setor é registrar um crescimento de 70%, ao final do ano passado. Atualmente existem cerca de 300 empresas de jogos eletrônicos no País.
Na esteira desse novo mundo esportivo, a streamer (como são conhecidos os jogadores que fazem transmissões ao vivo) SuriBH em apenas um ano na nova atividade, já alcançou mais de 275 mil visualizações de suas lives. Nesse período, arregimentou 15,5 mil seguidores fixos, do Brasil e de países como Argentina, EUA, Portugal, Suécia, Inglaterra, França em seu canal, além dos eventuais que passam diariamente sem seguir.
Sua história ilustra uma nova modalidade de atletas (os cyber atletas) que, no auge da carreira, podem obter atraentes salários de, em média, R$ 30 mil mensais. Um mercado que está atraindo jogadores conhecidos no mundo real como Ronaldo e Neymar, que já investem nas plataformas virtuais.
As transmissões de jogos em tempo real pela internet (live streaming) também atraem cada vez mais simpatizantes. De acordo com a revista Forbes, a Twitch.tv é, atualmente, a maior companhia desse segmento. Além de hospedar os streamers, a emissora transmite grandes campeonatos de jogos eletrônicos, superando a audiência das tradicionais competições esportivas.
Em 2016, o The International de Defense of the Ancients 2 (DOTA2), um dos mais populares jogos, distribuiu mais de US$ 20 milhões entre os competidores. Segundo dados da Confederação Brasileira de Futebol, o campeonato brasileiro de 2015 destinou R$ 35,8 milhões em premiação, quase metade da competição on-line.
Os números surpreendem também quando se comparam a audiência dos jogos. Em 2014, a Twitch.tv foi responsável por 43,6% das transmissões ao vivo, nos Estados Unidos. A ESPN, uma popular emissora de TV de esportes, ocupou 6,3%.
Interação é diferencial para atrair jovens
Num mundo alterado pela rede mundial de computadores, as transmissões em tempo real de jogos apresenta um diferencial competitivo em relação às tradicionais competições. Um dos seguidores de SuriBH explica de foma simples essa vantagem.
O bacharel em direito Marcelo Augusto Moliera Putte, 26 anos, conhecido no canal da gamer pelo apelido Saint_Coruja, explica que assistir a um streamer é como ver seu atleta favorito jogar e, ainda, interagir com ele. Além da comunicação com o jogador, esses canais disponibilizam um chat que permite a conversação entre os espectadores.
Ao contrário dos que reclamam do isolamento de jovens que passam horas diante do computador, esse tipo de entretenimento promove divertimento e aproximação entre os participantes. Uma rede de amigos que, embora distantes fisicamente, compartilham conversas que extrapolam o mundo do esporte. “Por isso dizemos que fazemos parte da família SuriBH”, afirma Coruja.
O conteúdo transmitido ao vivo também pode ir além de uma partida, variando de acordo com o perfil de cada streamer. Como é um espetáculo de exibição, os talentos pessoais contam muito para a escolha de seus seguidores.
Alguns, como Fallen, reconhecido como um dos melhores jogadores do mundo de Counter Strike Global Offensive (CS GO), asseguram os espectadores por suas habilidades técnicas. Outros, como SílvioSantosdoCs, encarnam personagens fictícios e aliam o bom-humor para agregar movimentação em seus canais. Dicas de como jogar, piadas, histórias, experiências, enfim, não há limites e nem restrições para o contato com os seguidores.
A mineira SuriBH, na visão de assíduos espectadores, mescla diversão com interatividade. “Uma pessoa gentil, carinhosa, divertida e bastante doida”, resume um de seus fieis seguidores, o brasiliense Hugo Santana, o HCSBr ou, simplesmente, Agacê, de 22 anos.
Quando a diversão vira assunto sério
Do ponto de vista dos amantes de jogos virtuais, assistir ou participar dessas atividades é uma deliciosa brincadeira. Mas, quando essa dedicação se torna profissão, a rotina pode não ser tão simples.
O dia a dia de um streamer não é preenchido apenas com diversão. Manter um canal e garantir a audiência é sempre um desafio.
Para as mulheres, conquistar esse mercado é ainda mais complicado. O mundo virtual reflete o real, dominado pelos homens e ainda sob a visão machista.
O mundo dos jogos eletrônicos não é diferente. Enquanto crescem os investimentos em competições masculinas, o cenário feminino vive de “pires na mão” para tentar conquistar o seu espaço.
E foi nesse campo hostil que SuriBH se embrenhou. No seu cotidiano, ela ainda enfrenta manifestações preconceituosas e dificuldades de obter patrocinadores. “É muito comum receber xingamentos quando mato algum homem. Eles se sentem ultrajados quando veem que é uma menina que os tirou da competição”, conta ela.
Suri lamenta, também, que muita jogadora acaba fazendo sucesso mais por seus dotes físicos. “Não sou fofinha e nem sexy, aí tenho que conquistar por outras qualidades”, brinca.
Um dos motivos para ter optado por abandonar o cenário competitivo foi exatamente as poucas opções oferecidas para as mulheres. Nas transmissões ao vivo, são várias as oportunidades de ganho.
O streamer pode ser remunerado pelas propagandas que rodam durante suas transmissões, pelas inscrições (subscribe) em seus canais e por doações espontâneas dos espectadores, trocadas por mensagens ou outros benefícios, como preferência para jogar com o streamer, chances duplas em sorteios e emoticons exclusivos do canal. Há, ainda, patrocínios de empresas, uma alternativa cada vez mais visada por investidores de olho nesse mercado promissor.
Os incentivadores pessoais que contribuem para esses atletas formam uma importante rede para o crescimento de cada um.
O paulistano Alexsandro Everton Isidro, 26, é um deles. Ele explica que contribui com Suri por gratidão. “Ela transforma minhas noites e madrugadas em uns dos momentos mais alegres do meu dia”. É essa consciência de troca que os une.
Os investidores anônimos e pessoais compreendem que os streamers têm compromissos financeiros e precisam de dinheiro para investir no próprio espetáculo. Recompensam pela diversão que recebem. Um ingresso virtual.
“Um streamer, que passa horas diárias dedicado a essa atividade tem contas para pagar. Sabemos que esse apoio é essencial para o crescimento do canal. Se pagamos tantos serviços, por que não por um com o qual temos tanta identificação?”, sugere Everton.
Amizade fora da tela
As lives são, para muitos, mais que diversão. Alguns dos entrevistados admitiram que conheceram Suri em momentos difíceis e que, por ela, recuperaram a alegria de viver. A streamer conta que recebe mensagens de seguidores pedindo conselhos ou sinais de ânimo. Um deles confessou que estava prestes a desistir da vida. “Sou amiga, conselheira e companheira. Às vezes fico preocupada com essas responsabilidades. Pessoas se abrem comigo, fazem confidências e pedem conselhos”, diz a jogadora.
Coruja mesmo foi um dos que estava passando por dificuldades emocionais quando começou a acompanhar o canal de Suri. Ele a conheceu em abril de 2017, ao assistir uma transmissão ao vivo feita por três dias consecutivos, 24 horas ao dia, para arrecadar fundos e garantir premiação a um campeonato feminino.
A transmissão teve participação apenas de mulheres jogadoras e uma delas era Suri. “Dentre todas, foi a que me conquistou. Acho que por seu jeito autêntico e natural. Suri nunca forçou uma piada. Ela tem uma luz que faz com que a gente queira ficar perto dela”.
O contato diário e ao vivo com o atleta e com o chat acaba aproximando as pessoas e formando amigos. “Por indicação de um streamer, conheci um novo canal que mudaria muitas coisas na minha vida. Mal sabia eu que desenvolveria uma forte amizade com pessoas maravilhosas ao longo dos meses”, afirma Agacê, ao contar como conheceu a mineira.
As amizades formadas no canal muitas vezes se consolidam fora do mundo virtual. SuriBH mantém um grupo no whatsapp, formado por moderadores (pessoas escolhidas pela streamer para ajudar na live) e subs, que trocam mensagens diariamente.
Parte de seus seguidores também se encontraram em setembro, numa festa surpresa de aniversário. Saíram das telas para um encontro real. Vieram de Florianópolis, Vitória, Brasília, Contagem, Sabará, Betim e muitos da capital mineira. Os que não puderam comparecer gravaram áudios e vídeos com mensagens de felicitações pelos seus 25 anos.
Sem qualquer suspeita, Suri chegou para o churrasco em família na casa da tia e se deparou com os convidados que ainda não conhecia pessoalmente. Identificados por crachás, aqueles que estão com ela diariamente foram se apresentando, arrancando lágrimas e risos da jogadora. “Foi muito emocionante. Jamais imaginei receber uma homenagem tão tocante”, diz ela.
Assim como mudou a vida de algumas pessoas, Suri também é beneficiada pelo contato e carinho de seus seguidores. Vítima de uma depressão que a acompanhou por anos, foi na livestremming que ela encontrou espaço para desenvolver seu talento e se sentir amada. “O que seria de mim sem vocês – sempre diz para eles. Para me servirem”, completa em tom de zombaria.
Dedicação e persistência, ingredientes essenciais
A paixão de SuriBH por jogos virtuais vem desde a infância. Aos 3 anos já brincava no computador da tia e com videogames. Dez anos depois, conheceu e se encantou pelo Counter Strike (CS) 1.6 e deu início à sua carreira amadora de gamer. Participou de alguns campeonatos presenciais e onlines, entre eles da World Cyber Games (WCG Brasil) 2011, evento internacional promovido, anualmente, pela empresa Coreana International Cyber Marketing e pela Samsung.
Diante da nova versão Global Offensive (GO), deu um tempo do CS e passou a se dedicar ao Dota 2, outro jogo que atrai milhões em todo mundo. Diferente do primeiro, que retrata uma batalha entre terroristas e policiais, o Dota envolve personagens fantasiosos que se combatem para derrotar o inimigo, ao dominar o ancião do território alheio.
De volta ao Cs:Go, a gamer mineira passou pelos times da ProGaming, Pichau, Supernova, entre outros, chegando a finais de várias competições. Em 2016, participou da G3x CUP , na MAX5 pelo time da Pichau.
Em meados de novembro daquele ano trocou o mercado competitivo pela live streamming. Deixou o nome Ra e adotou o apelido que ganhara de outros amigos jogadores.
Para chegar à condição atual, Suri contou com o apoio de outros gamers. O primeiro computador foi montado pelo também streamer mineiro Écio Frago. E naquele 16 de novembro de 2016 inaugurou seu canal apenas em sua companhia e do já companheiro de jogos Guilherme Donath, o Dona, de Florianópolis. Seu primeiro visitante foi o garoto paranaense Felipe, o Benja, 15 anos.
De lá pra cá, Dona, de 25 anos, de adversário nas partidas competitivas, tornou-se seu parceiro diário nos jogos que transmite. Eles se conheceram em 2015, durante uma partida em times adversários. Foi ele quem lhe apresentou o jogo H1Z1, o primeiro que transmitiu e ao qual se dedicou a maior parte do ano.
Atualmente, ela varia as transmissões com outros jogos, como o popular PlayerUnknown’s Battlegrounds (PUB), alguns com a participação dos fãs, como Business Tour (Banco Imobiliário), Gartic e Uno.
“Não é fácil levar esse trabalho. É preciso muita força de vontade, dedicação e compromisso porque as pessoas que gostam de assistir um streamer, quando chegam cansadas do trabalho ou da escola, querem algo para se divertir e relaxar. Admiro essa dedicação da Suri”, afirma Dona.
Agradar os expectadores (viewers) é um dos grandes desafios. “É preciso muita criatividade para agradar públicos tão distintos e comprometimento, para manter o canal praticamente todos os dias em horários que eles já estão acostumados. No meu caso, madrugada a dentro”, conta Suri.
Sua receita é aliar os jogos com lives diferentes – conhecidas como IRL (abreviatura de in real life, ou vida real), nas quais faz brincadeiras, cumpre desafios, recebe convidados ou realiza atividades distintas dos jogos. Em seu aniversário, passou horas divertindo os expectadores ao fazer o próprio bolo e, claro, fazendo mímicas, cantando, dançando e “pagando outros micos”, como ela mesma narra.
Apoio dos bastidores
Manter a audiência, além da criatividade, pede, também, colaboração. E SuriBH conta com uma legião de voluntários dispostos a ajudá-la a crescer e manter seu canal.
Os moderadores são espectadores frequentes que ficam de olho no chat para evitar mensagens inoportunas ou que desrespeitam as regras do canal. Suri não admite manifestações preconceituosas, racistas, homofóbicas ou ofensivas contra qualquer pessoa do chat.
Eles também fazem trabalhos para ajudá-la como trocar o título do jogo que está no ar, administrar as músicas de fundo ou o volume de transmissão e até repassar a ela o conteúdo de mensagens que não consegue acompanhar. São os vigilantes da ordem e da qualidade do canal. “Meus anjos protetores”, descreve ela.
A melhoria do equipamento que usa foi possível pelo apoio financeiro recebido. O design do canal também foi oferecido voluntariamente. E muitos dos expectadores chegaram em função dos hosts (hospedagem) que recebeu de streamers mais antigos e famosos, como Silvio Santos do CS e The Darkness.
Suri sabe que ainda há um longo caminho para chegar ao nível dos grandes que estão no topo do sucesso. Mas se sente satisfeita pelas conquistas que obteve em tão pouco tempo. “Trabalhar para levar alegria ao outro é muito gratificante. Os desafios são grandes, mas o prazer compensa”.
Pode me chamar de Suri
A história da gamer mineira foi retratada num minidocumentário, trabalho de final de semestre de alunos de Cinema e Audiovisual da Universidade Una, de Belo Horizonte.
O diretor do curta, Jonathan Akinnes Stanley, 20 anos, é também um amante de jogos virtuais. Desde 2014 acompanha streamers da Twitch TV e acabou conhecendo a Suri, atraído por ser da mesma cidade e transmitir os jogos que ele gosta.
“Conforme fui assistindo fui me interessando pela maneira como ela se comunica com o público, pela qualidade do conteúdo e, claro, por suas habilidades”. Akinnes também se interessou pela história dela.
A ideia inicial do documentário era abordar o e-sport e entrevistar gamers da elite do setor. Mas, no desenvolvimento do projeto, optaram por jogadores menores, que oferecessem maior interação com o público.
“A primeira pessoa que passou por minha cabeça foi a Suri e quando apresentei seu perfil, a aprovação foi imediata”. Segundo ele, a escolha considerou não apenas o fato de ela ser uma gamer de BH, mas também por ser mulher. “Sabemos que os torneios femininos não são tão reconhecidos como os masculinos e que precisam de mais apoio”.
O documentário Pode me chamar de Suri tem 8m30 e está disponível no youtube. “Eu me orgulho muito de ter dirigido esse trabalho porque não fala somente do mundo da Suri, mas mostra ao público como funciona o cenário feminino do e-sport, algo que não é muito conhecido mundialmente”, afirma o diretor.