Discordo de quem afirme que é perda de tempo ficar por horas navegando por esse mundão cibernético. Obviamente, há que ser seletivo, pois nem tudo que reluz é ouro. Por falar em ouro, garimpei há tempos um texto memorável (aliás, todos da safra dele são assim) do Eduardo Machado. E que, por sinal, é bem adequado para essa época do ano.
Nesse texto, o autor trata da transfiguração. Para isso, recorre a um recorte do Evangelho: “Naquele tempo, Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à montanha para rezar. Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência” …
E é a partir dessa citação bíblica que Machado nos conduz pela simbologia contida no tempo da Quaresma, que, segundo ele, nos faz vários convites. Um deles é a oportunidade de ir além das aparências, o conhecido “buscar o sentido das coisas”.
Em um dos meus escritos recentes falei sobre isso. Para muitos de nós, Quaresma, Semana Santa têm cheiro e sabor. Remetem a ovos de Páscoa, a peixe e bacalhau, no nosso caso, ao Cundito. Muitos aproveitam para perder peso e aí se abstêm, mesmo que seja só por um curto período, de beber cerveja, tomar sorvete e de comer chocolate. Sacrifício que, graças a Deus, termina no sábado. Aleluia!!! De volta ao mundo real. E o sentido das coisas?
Machado nos dá a resposta sobre o outro lado da moeda que, acreditem, passa longe do nosso jeitinho brasileiro, da conhecida “Lei de Gerson”, aquela de querer levar vantagem em tudo. Segundo o professor, “a vida interior, a oração, os silêncios, a solidariedade com os necessitados, a conversão pessoal, práticas propostas pela Igreja neste tempo da quaresma, nos ajudam a ver além, buscar o significado mais profundo das palavras, dos gestos, vislumbrando o mistério que mora nas coisas.”
Voltando ao Evangelho, no caso de Machado a “mudança de aparência” tem a ver com a sua vivência e com a leitura de Santo Inácio de Loyola, na convivência com os jesuítas, com as irmãs Filhas de Jesus e com a sua a família, na cozinha da sua casa, lugar onde a mãe “exercitava a sua ternura culinária”. Machado cita ainda a poesia – “a janela para a contemplação da beleza que está por aí, surpreendente” – e os livros, outra fonte inspiradora.
Um deles, “Tempus fugit”, de Rubem Alves, narra a história de uma paciente que estava em terapia e teve uma experiência surpreendente ao observar uma simples cebola. A mulher se sentiu perplexa ao perceber que aquele momento comum se tornou algo extraordinário. Como algo tão banal como cortar uma cebola poderia se transformar em algo tão significativo? Foi exatamente isso que aconteceu. Da tarefa banal, doméstica e repetitiva, brotou a possibilidade do permanente. Do cheiro característico, marcante, de uma cebola cortada, numa ação limitada e limitante, fluíram aromas de eternidade.
A cena descrita no capítulo “Estou ficando louca…”, diz mais ou menos assim: … “Olhei para a sua forma arredondada, senti a lisura de sua pele sob meus dedos, vi seus anéis circulares, perfeitos, encaixados uns dentro dos outros, surpreendi-me com sua quase transparência, a luz se fragmentando em centenas de pontos em sua superfície brilhante (…)”
Para Machado, a paciente de Rubem Alves não está descrevendo apenas uma cebola, mas um modo diferente de olhar. “A cebola continua lá, no seu destino cebolístico de ser sempre uma cebola. Mas os olhos que veem para além da banalidade das coisas, quando percebem que têm suas raízes na alma, provocam uma transfiguração”.
E ela continua: “Pela primeira vez na vida vi que uma cebola era bonita. Se fosse pintora, pintaria uma cebola. Se fosse fotógrafa, fotografaria uma cebola. Minha cebola deixara de seu uma criatura do sacolão, à mercê de facas e maxilares, e aparecia como criatura encantada, moradora do mundo da beleza, ao lado de joias e de obras de arte…
Ao acordar deste transe místico, em que vi a rodela de cebola como se fosse o vitral de uma catedral gótica, fiquei assustada. Que coisa estranha deveria estar acontecendo como os meus olhos? Que transformação incomum deveria ter acontecido comigo mesma? (…) o que aconteceu com a cebola começou a acontecer com tudo. Meus olhos já não eram os mesmos (…)”
Dito isso, Machado nos convida a orar. “A oração abre em nós, não os olhos, mas um outro jeito de olhar. E somos afetados no mais profundo de nós mesmos”.
E afirma: “É possível e preciso rezar com os sentidos; ver, ouvir, tocar, aspirar e saborear espiritualmente as coisas e pessoas que nos rodeiam e, pelo afeto, invadem. E, afetados, percebemos que, para além da cena previsível, do objeto e até das pessoas banalizadas, coisificadas, há o toque do sagrado que muda o rumo da vida, que dá sentido à loucura de viver, que encontra o amor preciso e possível nas situações mais improváveis.
A oração ensina o olhar a amar. E o que os olhos amam e rezam o coração sente e pede a gente pra viver”.
Viva Eduardo Machado! Volte logo do seu tempo sabático. Estou SENTINDO a sua falta.
Que as orações e as cebolas nos salvem desse mundo tão esquisito!
Põe esquisito nisso. Feliz em vê-lo por aqui. Beijo pro cê.
Querida, não é a gente que faz esse carinho de ler. Você que faz o carinho com seus brilhantes textos.
Obrigada, meu amigo leitor muito querido. Ótima semana pro cê.
“É possível e preciso rezar com os sentidos….” Disse tudo! Obrigada Gisele!