Comida para saciar o espírito

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Pratos típicos da culinária brasileira. Imagem - redes sociais
Pratos típicos da culinária brasileira. Imagem - redes sociais

Não sei você, mas adoro assistir missa. Mas, não se animem. Sou uma católica relapsa, omissa. Não frequento a Igreja com a constância necessária. Mas quando vou, amo. Gosto, especialmente, do momento da consagração. De quando o padre prepara o altar para a comunhão. Nesse ponto, sigo a cartilha do professor Eduardo Machado. Para mim, assim como para ele, todo altar é uma mesa de refeição. Se é de refeição é também de compartilhamento.

Até a forma como o altar se apresenta é simbólica. Em um de seus textos memoráveis, Eduardo lembra que ao longo do tempo o altar passou por mudanças. “Da mesa caseira, das primeiras comunidades cristãs, ainda clandestinas, passando pelas casas de família, da pompa de imensas catedrais aos altares barrocos das igrejas históricas, até os templos modernos dos nossos dias, é possível perceber a evolução arquitetônica da homenagem ao sagrado. E tudo ensina”.

Ensina, sim. Que o altar é a mesa da família de Deus. Não importa se é simples ou refinada. É nesse lugar que todos se reúnem para compartilhar o pão e o vinho que se tornam o corpo e o sangue de Cristo. Ponto de partida para que os presentes possam alimentar a alma e o espírito com o que há de mais sagrado. Comida que nos fortalece e nos prepara para enfrentar os desafios diários. E olha, não são poucos.

A propósito, compartilhar é um verbo que aprecio muito. Relembrando as aulas de português da Dona Amélia, significa fazer parte de algo juntamente com alguém, dividir, partilhar ou repartir com outras pessoas. É a junção do prefixo “com” e do verbo “partilhar”. Vem do latim partire, que significa dividir em partes.

Essa prosa sobre alimentar o espírito, sobre compartilhamento, acendeu uma luzinha aqui nessa minha cabeça caótica: você já parou pra pensar o que tem por trás da letra de “Comida”? Ah, não vai me dizer que que você nunca cantou “bebida é água, comida é pasto” a plenos pulmões? E que subiu o tom e perguntou quase aos gritos:

  • Você tem sede de quê? Você tem fome de quê?

Pausa para reflexão: será que os nossos Titãs, quando escreveram essa letra, só estariam curiosos sobre os nossos desejos, queriam saber apenas e somente o que a gente bebe ou come? Sei, não, viu! Acredito que não seriam tão simplistas assim. Penso que a coisa vai além. Vai ver os nossos Titãs, lá em 1987, já se preocupavam com questões que ainda hoje nos deixam de cabelo em pé, tipo miséria, fome, desassistência.

Colocando os devidos pontos nos “is”, nessa canção os autores falam, sim, sobre miséria e alienação. Para isso, lançam mão de uma arma infalível: a poesia. Assertivos, deixam nas entrelinhas que a comida, além de nutrir o corpo, também nutre a alma. Que a vida não se restringe a trabalho e obrigações; engloba também bem-estar, aprendizado, prazer, diversão e arte. A canção destaca ainda a importância de amor e do prazer para aliviar as dores da vida. “Comida”, de forma poética, nos convida a refletir sobre o que verdadeiramente alimenta nossos desejos e necessidades.

Ah, agora prestenção nessa informação: não foram só os Titãs que lançaram mão da poesia para falar sobre alimentar o corpo e o espírito. Carlos Drummond de Andrade já tinha recorrido a essa artimanha lá pelos anos de 1940. A linda da Denise Godinho, alma por trás do blog “Capitu vem para o jantar”, resgatou esse fato. Ela conta que há uma lenda sobre uma situação vivida por Drummond. O fato, se é que existiu, tomara que sim, aconteceu após um dia de exploração pelas íngremes e historicamente ricas ruas de Ouro Preto.

Ao chegar ao hotel, o poeta descobriu que não havia disponibilidade para o jantar, uma vez que não havia efetuado uma reserva antecipada. Apesar da fome que o atormentava, a escassez de comida não o abalou.

Em vez de se render à adversidade, Drummond transformou-a em fonte de inspiração. Foi naquela noite que ele concebeu o poema “Hotel Tóffolo”, posteriormente publicado em 1951 no livro “Claro Enigma”.

“E vieram dizer-nos que não havia jantar.
Como se não houvesse outras fomes e outros alimentos.
Como se a cidade não nos servisse o seu pão de nuvens.
Não, hoteleiro, nosso repasto é interior e só pretendemos a mesa.
Comeríamos a mesa, se no-lo ordenassem as Escrituras.
Tudo se come, tudo se comunica, tudo, no coração, é ceia”.

Essa obra celebra a ideia de que a verdadeira nutrição reside no coração e na mente, transcendendo as necessidades físicas e alimentando a alma com poesia. Prometo que na próxima celebração da Palavra vou estar ainda mais atenta aos mistérios divinos e ao que está nas entrelinhas.

Ah, ainda há tempo para um recadinho do coração: nesses tempos de calor extremo, lembre-se de repartir água. Há muita gente com sede nas ruas. Animaizinhos, também. Sede de água, de amor e de compaixão. Fiquem bem.

4 COMMENTS

  1. Para mim jantar ou almoço é ceia, rito, celebração. Mesa como um altar. Nada de Fast Food. Péssima ideia contemporânea. Aí, lenta e saborosamente, qual festa de Babete se alimento o corpo e o espírito. Afinal, a gente não quer só comida e tudo no coração é ceia!!!! Beijo

  2. Escreve bem demais essa “minina”, conheço a escrita dessa “minina” de longa data, dos rascunhos que até hoje guardo com carinho.

  3. Que lindo Gisele! Comida para mim é sagrada, nada de desperdício!Aqui em casa amamos o café da manhã. Se eu pudesse, sempre, compartilharia com alguém! Sim, compartilhar é realmente uma bela palavra! Quanto a Carlos Drummond ” pessoinha incrível”.

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