Vivo falando aqui sobre comida. Até parece que sou uma glutona, né? A verdade é que me alimento pouquíssimo. O que me atrai mesmo é o perfume que vem da cozinha, o barulhinho da carne assada na chapa, a alegria de quando todo mundo se reúne em volta da mesa, a história por trás do prato, as lembranças. Tudo isso alegra o meu espírito e sacia o meu estômago. Diz o povo daqui de casa que vivo de luz, de uva, cevada, lúpus … Não me pergunte o porquê.
Mas voltando aos estímulos, Marcel Proust, em “A passagem das madeleines”, trecho do livro “Em Busca do Tempo Perdido”, traduz bem essa minha relação com a comida:
“(…) De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligado ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde aprendê-la? Bebo um segundo gole em que não encontro nada demais que no primeiro, um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, parece que está diminuindo a virtude da bebida. É claro que a verdade que procuro não está nela, mas em mim (…)”
É bem assim. Ontem mesmo o Beto me mandou um vídeo pelo whatsapp. Trazia cenas do cotidiano de uma típica cidade do interior, embaladas pela voz de Osvaldo Montenegro. Um deleite.
Assim que cheguei em casa, ansioso, ele logo perguntou:
- Gisele, você assistiu ao vídeo que lhe mandei?
- Assisti, sim. No ônibus. Amei.
- O que mais lhe chamou a atenção?
- As roscas da rainha, o forno de barro …
- Uai, achei que era o jeito das pessoas, as casas, a música.
- Tudo isso, mas, principalmente, as quitandas. A imagens me entregaram um cesto lotado de lembranças boas. De quando, nas tardes de sábado, em pleno verão, Mamãe aproveitava o calor para fazer roscas da rainha. Huum! A gente comia de joelhos. Aliás, adoro essa expressão. “Comer de joelhos” indica que a comida está divina, de agradecer aos céus. É o mesmo que “comer rezando”. Seria, segundo alguns teóricos da cultura brasileira, a versão da expressão portuguesa “é de comer e chorar por mais”.
Voltando às roscas, Mamãe cumpria um verdadeiro ritual. Primeiro preparava o fermento. A farinha de trigo era acrescentada aos poucos e a mistura sovada até soltar da gamela. Quando dava o ponto certo, a nossa querida enrolava como caracóis. Outras vezes o formato era de pão. Nessa fase era preciso deixar a massa descansar por uns 30 minutos.
Antes de levar ao forno, entrava o pulo do gato: depois de enrolar as roscas Mamãe fazia uma pequena bolinha com a massa que ia direto para um copo cheio de água. Quando a bolinha subia era sinal que as roscas estavam prontas para serem assadas. Outra dica: se o formato era de caracol, o nosso preferido, Mamãe abria a massa, pincelava com manteiga em temperatura ambiente, cobria com açúcar e por cima, canela. Aí enrolava e levava para assar. Humm! Posso até sentir o perfume. Você conhece o cinnamon roll? Então. É praticamente a mesma coisa.
Se na nossa infância essa preciosidade era assada no forno do fogão a lenha, nossos avós assavam as quitandas em fornos de barro construídos no quintal. Papai contava que na meninice dele, em muitas casas e fazendas, o forno era feito de cupinzeiro. Isso mesmo. Você não entendeu errado. Cupinzeiros são aqueles monturos de terra espalhados pelo pasto. Pra ficar mais claro são ninhos de cupins. Eta bichinho danado! Nas cidades, destrói móveis, portas, janelas e o que mais tiver pela frente. No campo acaba com sementeiras e prejudica as raízes de várias culturas, como a do café, por exemplo. Vai que o cupim, tadinho, tem um lado bom. Mas, confesso, desconheço.
Ah, como sou dessas que compartilha tudo (ou quase tudo), fui em busca de informação sobre o forno de cupim. Vai que você ficou interessado e quer ter um, né? Encontrei o Cláudio Ruas que não economiza no detalhe. Ele conta que “o forno de cupim pode ser feito basicamente de duas formas, ou com um cupinzeiro inteiro, ou com pedaços montados, o que requer mais habilidade do construtor. Funciona mais ou menos assim: o cupinzeiro (vivo) é partido com machado, em blocos, e é trazido para ser montado em uma base. As partes vão sendo encaixadas como num quebra-cabeça e são coladas e moldadas com uma massa rústica, feita com terra de formigueiro e estrume de vaca fresco. Depois é a vez dos bichinhos trabalharem. Durante alguns dias os cupins vão cuidar de remendar a estrutura por dentro, até que o forno esteja apto para uso”.
Segundo o Cláudio, que é gastrônomo, “o forno de cupim tem diversas vantagens em relação aos demais. A começar pela principal delas, a capacidade de reter o calor interno. Ela ocorre, sobretudo, graças aos túneis dos cupins, que se transformam em bolsas de ar quente. É composto de material ultra resistente, ecológico e sustentável. Além do charme e da beleza da sua rusticidade, o uso desse tipo de utensílio ainda promove um resgate de cultura e tanto.
Mas, é bom ficar esperto. O Cláudio lembra que “o forno de cupim é igual a carro de boi. Não é qualquer um que sabe fazer, muito pelo contrário. Estão em extinção e precisam ser mais valorizados e observados. Esses mestres precisam urgentemente de discípulos”, responsáveis, segundo ele, por ajudarem a manter acesa essa chama cultural tão importante e histórica.
Ah, sobre a Rosca da Rainha segue a receita que até agora era guardada a sete chaves pela nossa família. Pensando bem, esse nome tem tudo a ver com Mamãe, para nós, uma rainha de fato.
Rosca da Rainha
Ingredientes
½ kg de farinha de trigo
02 colheres (sopa) de fermento de padaria
½ litro de leite
1 dúzia de ovos
½ kg de açúcar
2 ½ Kg de farinha de trigo
1 prato fundo (pelo vinco) de gordura derretida
Modo de fazer:
1ª massa: adiciona-se o leite morno sobre o fermento. Use ½ kg de farinha para engrossar a massa. Deixe crescer.
2ª massa: depois que o fermento tiver crescido acrescente a ele os ovos batidos como para pão de ló e o açúcar. Bata bem e coloque para crescer. Depois de crescida, junte o restante da farinha de trigo e a gordura derretida. Enrole a seu gosto e mais uma vez deixe crescer. O ponto certo está na dica da bolinha.
Difícil? Nem tanto. É só usar ingredientes de qualidade e seguir o passo a passo. Não tem erro. Pensando bem, difícil mesmo é construir o forno de cupinzeiro.
Senti o cheiro da rosca.Lemnranças olfativas que nós remetem há danada de uma saudade…
É também por isso que escrevo. 💞
Proust ajoelharia para o Rosca da Rainha feita no Forno de Cupinzeiro!!!!
Não duvido disso.🤭
Que história linda Gisele, sua mãe deve ter sido uma pessoa muito especial! E quantas lembranças ela deixou!!!
Bom dia, Lucianara!
Mamãe foi uma mulher muito além do seu tempo. Era excelente dona de casa, apesar de afirmar com frequência que não gostava do serviço doméstico. Também era uma educadora maravilhosa. Construiu uma bela história na E.E. Dr. Isauro Epifânio, em Conceição do Pará.
Obrigada por ler os meus escritos. Fico muito feliz.
Beijo pra vc.
Boa tarde,
Eu também senti na hora a memória olfativa dessa Rosca Rainha tão deliciosa que dona Nely fazia, lembrei me também dos biscoitos de queijo ferradura dela, não tem igual nesse planeta.
Tenho certeza que se o Olivier Anquier tivesse acesso a histórias como essa, viria em seu fusquinha até Cardosos (C.P.)-MG para registrar na prática as receitas e levaria pra TV e pra sua padaria de Chef.
Parabéns Gisele Bicalho 👏👏👏
Que delícia de comentário, Cris! Mamãe certamente ficaria muito envaidecida se o lesse. Obrigada por ler o meu escrito e pelo comentário tão carinhoso. Beijo pro cê.
Boa tarde,
Eu também senti na hora a memória olfativa dessa Rosca Rainha tão deliciosa que dona Nely fazia, lembrei me também dos biscoitos de queijo ferradura dela, não tem igual nesse planeta.
Tenho certeza que se o Olivier Anquier tivesse acesso a histórias como essa, viria em seu fusquinha até Cardosos (C.P.)-MG para registrar na prática as receitas e levaria pra TV e pra sua padaria de Chef.
Parabéns Gisele Bicalho 👏👏👏
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