Vocês já repararam como muitos doces cutucam a nossa memória afetiva com vara curta? Volta e meia me pego numa viagem aos tempos da delicadeza. E o arroz doce, então? Verdadeiro looping. Vou pra lá e nem quero voltar. Imagino que vocês devem estar matutando aí:
- Meu Deus! Que bobagem! Arroz doce é algo tão simples, tão prosaico. Toda avó sabe fazer. Toda mãe também. Por que logo o arroz doce? Poderia ser um macaron, um crêpe suzette, um petit gateau … Seria um bate e volta a Paris sem escalas.
Pois, então! Comigo não é bem assim. Paris sempre foi e é o meu objeto do desejo, mas na infância e na adolescência é onde a minha memória afetiva fincou morada. O arroz doce tem o poder de me devolver às cozinhas da minha avó e da minha mãe.
Ouvi alguém aí dizendo que esse é um doce fácil de fazer? Né, nada. Arroz doce requer maestria, sabedoria ancestral para chegar no equilíbrio exato do doce com o salgado, na acidez discreta da casca da laranja ou do limão (poderia dizer zets, mas fica para outra hora), da crocância dos pedacinhos dos doces em calda, do leite gordinho, da canela e do cravo, tudo bem pouquinho que é para um não roubar o sabor do outro. O arroz há que ser de primeira e bem pouco. Um pires raso para dois litros de leite.
Comece por cozinhar o arroz em água. Deixe ali no fogo até que seque. Só aí vai o leite, o açúcar, a pitada de sal, a canela, o cravo e raspas de laranja ou do limão. Deixe que cozinhe lentamente em fogo baixo. Mexa para que o amido vá se soltando aos poucos, trazendo cremosidade à mistura. Para finalizar, junte os pedacinhos de fruta em calda e cozinhe mais um pouquinho. E antes de tirar do fogo, dilua uma gema em um pouco de leite e junte ao doce. Cozinhe por mais um minuto e desligue a chama.
Se tem pulo do gato? Tem, sim. Minha avó polvilhava queijo minas ralado por cima do doce e depois levava a Marinex ao forno para grelhar a delícia batizada como “arroz doce sapecado”. Para nós, “arroz doce da Vovó Cocota”. Mamãe aprendeu com a mãe dela e nós com as duas. De vez em quando sai uma travessa da cozinha. Mas não fica igual. Nem poderia, né? Falta o ingrediente principal: a presença amorosa das duas.
Sei que nem todo arroz doce é assim. A praticidade exigida pela rotina de hoje leva muita gente que conheço a reproduzir as receitas da internet. Tem arroz doce com leite em pó, com leite condensado, com leite vegetal, com isso, com aquilo. Mas, posso falar? Tem nada igual ao da casa da minha infância, não. Aquele, sim, era arroz doce de verdade.
Na literatura essa iguaria também faz bonito. Vários autores já citaram o arroz doce em suas obras. Isabel Allende é uma.
“Numa noite de janeiro de 1996, sonhei que me jogava numa piscina cheia de arroz doce, onde chafurdava com a graça de um boto. É meu doce preferido – o arroz doce, não o boto – e por isso, em 1991, em um restaurante de Madri, pedi quatro pratos de arroz doce e, para complementar, um quinto, de sobremesa. Comi todos eles sem piscar, com a vaga esperança de que aquele nostálgico prato da minha infância me ajudaria a suportar a angústia de ver minha filha muito doente. Nem minha alma nem minha filha se aliviaram, mas o arroz doce ficou associado na minha memória a consolo espiritual.”
Esse é um recorte do livro Afrodite: Contos, Receitas e Outros Afrodisíacos escrito por essa autora chilena que eu adoro, em um momento no qual ela tentava se recuperar da dor da perda da filha Paula, vítima de uma doença degenerativa. Com a morte de Paula, Isabel passou três anos tentando se recuperar da tristeza. Foi ai que começou a sonhar com comida e sentiu que o tempo de luto estava chegando ao fim. As comidas e a escrita a ajudaram nesse resgate:
“Por fim emergia do outro lado, em plena luz, com um desejo enorme de voltar a comer e a me divertir. E assim, pouco a pouco, quilo a quilo, beijo a beijo, nasceu este projeto”, disse a escritora, referindo-se ao livro Afrodite.
Então, chega de papo. Já pra cozinha que de tanto falar em arroz doce minha boca tá que nem um “corrrgo” em tempo de chuva. Cheia d´água. Ah, ficaram curiosos e querem saber a receita da Isabel Allende? É só dar um “control C control V”. Tá na mão. - Arroz doce da Isabel Allende
½ xícara de arroz
10 xícaras de leite - 2 xícaras de açúcar
1 rama de canela
1 colher de canela em pó
1 pedaço de casca de limão
4 xicaras de água morna
Modo de preparar: deixe o arroz de molho na água morna por meia hora. Coloque o arroz, o leite e a rama de canela, a casca de limão e o açúcar para ferver até que ele fique macio. Mais ou menos meia hora. Coloque-o em uma travessa, deixe esfriar na geladeira e, antes de servir, salpique canela em pó.
No blog @capituvempraojantar a @DeniseGodinho, de quem sou mega fã, reproduz a receita da Isabel Allende. Vale muito a pena assistir aqui
Saudades da nossa infância perdida. Dos quitutes da vovó e mamãe que eram simples e deliciosos.
É nesse lugarzinho que a Nossa memória mora.
Uai Gisele, eu nunca comi arroz doce assim! Deve ser simplesmente maravilhoso!!! Algum dia vou tentar reproduzir sua receita.
Lindas memórias!