Em tempos pandêmicos tenho pensado muito sobre essa tal felicidade. Rubem Alves a traduz como aquilo que existe só pela lembrança. Guimarães Rosa aponta caminhos e revela que ela se mostra é nas horinhas de descuido. Fecho com os dois.
Numa dessas horas, com saudades do nosso pedacinho de Brasília, fui pra cozinha preparar um Bolo de Nada, o preferido do meu cunhado Marcel. No caso, “nada” é “tudo”. Significa sabor, alegria. E o que era pra ser um dia qualquer, mostrou-se extraordinário.
Mágica? Pó de pirlipimpim? Varinha de condão? Vai saber, né? Ai vem a pergunta que não quer calar: como é que um simples bolo pode colorir o dia de alguém? A resposta pode vir do Leo Paixão. Esse chef que “amadoro” disse certa vez que guardamos um “c” dentro da gente. Disse que quando nos deparamos com um sabor da nossa infância, com um tempero de casa, toca uma espécie de sineta dentro da gente. Devo dizer que por aqui a sineta tem tocado com frequência. Tem sido um tal de blem , blem, blem que não acaba mais.
Sobre esse tal “terroir”, além do Bolo de Nada, há outra preferência nacional. É o Bolo de Milho, a quem o meu chef do coração (ou seria “crush”?) chamou, prosaica e mineiramente, de “broinha de milho de lata”. Segui a receita do Leo tim tim por tim tim. O resultado foi um bolo bem cremoso,.com uma casquinha deliciosa meio brulée. Por tudo isso, aqui em casa, essa belezura ganhou outro nome: Bolo Paixão. De Leo, é claro. Com todo respeito.
Ah, tem um detalhe importante. O Bolo Paixão não é unanimidade. Se o Bernardo e a Ana Júlia estão por aqui, ele não tem vez. Já, o Bolo de Nada ganha ares de festa. E dá-lhe chocolate meio amargo. Amargo, sim, porque essas crianças já apuraram o paladar e é um tal de “trazer cremosidade”, “apurar os sentidos” e de “equilibrar a acidez”.
De onde é que essas crianças tiram tudo isso? Só pode ser das nossas horinhas de descuido. Elas se tornaram tão constantes que para me presentear, Tia Aparecida, a melhor madrinha que alguém poderia desejar, bordou lindamente uma toalhinha de bandeja. Nada de flores, bules ou xícaras. Ela foi certeira. Remexeu nas minhas memórias afetivas e tirou de lá a casa dos meus avós, fonte desse tal de “terroir” a que o Leo se refere. Nesse lugar os ponteiros das horinhas de descuido há muito pararam pra se tornarem a infância toda. Eta Rubem Alves que não me deixa mentir.
Sem imaginar o tsunami de emoção que provocaria com o presente, Tia Aparecida ainda recomendou que a toalhinha fosse usada para cobrir os meus bolos de “tudo”. Só que não. Vai para uma moldura. O quadro ficará exposto em uma das paredes da sala de jantar. Se for assim, como Mia Couto, vou poder contemplar a casa como uma pintura. Sempre que contemplá-lo vou ouvir o canto doce da minha mãe, da minha avó e das outras mulheres que já habitaram essa casa e me legaram o tal terroir.
Ah, sobre a palavra “amadoro” usada pela Bebela, não foi erro do corretor, não. Trata-se de um neologismo criado pela nossa florzinha do Cerrado para resumir o que ele sente. Bebela não só ama como adora tudo aquilo que lhe toca o coração. Como o Bolo de Nada, por exemplo.
E só porque eu sou dessas, aqui está a receita do Bolo Paixão:
Bolo Paixão
Ingredientes
1 lata de milho verde com o líquido
1 lata de leite condensado
1 xícara de leite de Coco
1/2 xícara de óleo
3 ovos inteiros
1/2 xícara de milharina
1 colher (sopa) de fermento em pó
1 pitada de sal
Açúcar e canela pra polvilhar
Modo de fazer
Bata todos os ingredientes no liquidificador, exceto o fermento, e a milharina. Bata até triturar bem o milho. Desligue, acrescente a milharina e o fermento e bata mais um pouco só pra misturar. Despeje em uma assadeira bem untada e enfarinhada. Leve pra assar em forno pré-aquecido a 180 graus. Depois de assado, salpique canela e açúcar por cima e corte em retângulos. Eu preferi uma forma redonda e servi em fatias. O bolo fica bem cremoso.
Todas as crônicas com muita paixão .Amoooooooo
Que belo texto,Gisele.
Como sempre!
Nos transporta para este lugar mágico com cheiro de infância,com afago de mãe e cheiro de felicidade.
Amadores!(,plagiado a Bebela)
*Amadorei
Eu tbm “amadorei” a crônica.
Que delicia de ler, de sentir, de lembrar… só faltou comer um pedaço dessa gostosura!
Como sempre, seus textos são envolventes e nos leva a imaginar toda cena e cenário!!
“Amadorei” também!!!