Vistas pelo olhar dos olhos seus

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Foto - Nicodemos Rosa
Foto - Nicodemos Rosa

Há poucos dias, Túlio, um dos meus sobrinhos, falava sobre a riqueza da sua convivência com o avô materno. Em um relato emocionado, revelou a semelhança que via entre a vida do Senhor Jorge Viégas e a obra de Carlos Drummond de Andrade. Aí ele citou os versos da “Morte do leiteiro”. Nesse poema, Drummond denuncia a violência urbana, a precariedade da economia da época em que escreveu e o limite tênue entre a vida e a morte.

Você deve estar aí se perguntando:

  • Mas onde é mesmo que está a semelhança entre o avô do Túlio e o personagem de Drummond?

Não é na causa da morte do leiteiro. Seu Jorge não foi vítima de um tiro. O câncer o levou. Os dois – o avô e o leiteiro – se aproximam, sim, na luta pela sobrevivência com dignidade, pelas limitações que a vida lhes impôs e pela rotina marcada pelo trabalho extenuante.

Túlio contou que quando o glaucoma avançou o avônão conseguia mais distinguir as vacas. Ele as confundia com as moitas e os arbustos. As imagens se misturavam. No inverno, quando a neblina baixava, aí é que ele não enxergava mesmo. E pra piorar, Seu Jorge havia perdido um dos olhos na infância. Um golpe de machado levantou lascas de pedra que, infelizmente, o atingiram e o cegaram.

Ao longo do tempo, com a visão que lhe restava já comprometida pelo glaucoma, a lida no campo tornou-se uma tarefa ingrata. Apesar do físico impecável e de uma audição invejável, Seu Jorge não podia campear, pois não distinguia as cores das vacas. A “Suíça” era marrom, a “Revirada”, preta. Já, a “Sete Copas” e a “Bandeja”, eram malhadas em tons de marrom, branco e preto.

Até que um dia alguém teve a ideia de tomar emprestados os olhos do neto de oito anos. E foi aí que a rotina do Túlio mudou da água pro vinho. Para o menino, o dia começava bem cedo. O avô o acordava com bengaladas na vidraça. Era só o tempo de vestir uma jaqueta e passar na cozinha para um café “pelado”. O suficiente só pra despertar. O café do neto era fresco e adoçado em excesso pra dar energia. O do avô, ao contrário, era frio, de “ontem”. Ele não bebia feito na hora. Dizia que o pó bem torrado depois de fervido provocava azia. Por isso, virava o bule verde com café velho e frio direto na garganta. Pra acompanhar, nada de biscoito, bolo ou pão. Comer só depois. Era uma artimanha do avô. Funcionava como uma espécie de recompensa para a missão que vinha pela frente.

Ritual do café concluído, os dois saiam pasto adentro pra campear o gado. Ao neto cabia orientar a direção; ao avô, gritar chamando pelas vacas. As mais velhas só respondiam ao chamado dele. Se o neto gritasse elas não viriam ao encontro deles. E se o avô fosse sozinho não iria encontrá -las. Por isso, um era o olho do outro. Um não funcionava sem o outro.

A rotina se repetiu por mais de dois anos. O leite era pouco (como no poema de Drummond), mas sobrava disciplina, aprendizado e gosto pela vida. Aqueles 30 litros de leite – o avô sabia- não davam lucro algum. Mas o prazer e a vontade de viver brotavam daquela rotina. Seu Jorge vivia repetindo que esquentar a cama até tarde não lhe traria longevidade. Só o faria sentir-se velho e preguiçoso. Uma lição aprendida pelo neto.

Jorge Viégas - Arquivo pessoal
Jorge Viégas – Arquivo pessoal

Anos mais tarde, quando Seu Jorge faleceu, Túlio já conhecia a “Morte do leiteiro”. Para ele, não há dúvida: o câncer que levou o avô foi a bala que matou o inocente do poema do Drummond.

“(…) A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue… não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.”

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O poema na íntegra:

Morte do Leiteiro (Carlos Drummond de Andrade)

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.

Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha

vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morador na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro…
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,  a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue… não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

(in: “A rosa do povo”, 1945)

10 COMMENTS

  1. Querida Gisele, lindo e de uma emoção sem fim, esse seu conto sobre a história do meu pai e o Túlio. Eu que à esta época já morava fora, não fosse você, talvez nunca iria saber de desse fato. Parabéns pela crônica e por eternizar uma história tão singela e exemplar.

  2. Adoro! Seus textos são verdadeiras viagens afetivas! Orgulho de poder estar tão perto do seu coração! Privilégio sem preço!

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