Aposto que você, assim como eu, já bradou aos quatro ventos que não é racista e coisa e tal. Nos últimos dias, quando o Dia Nacional da Consciência Negra trouxe a questão para as manchetes e “bombou” na internet, me vi obrigada a fazer uma mea culpa. Isso foi ruim? Nem um pouco. No mínimo, nos obrigou a uma reflexão.
Ou você ainda acha que é natural dizer que “a coisa tá preta” ou que fulano de tal é de “meia tigela”? Pior que isso, quando a gente não se incomoda em dizer em tom de deboche que determinada situação nos soa como um “samba do crioulo doido”. Se você se viu nessas duas situações, a conclusão é óbvia: a opressão e o preconceito estão tão incorporados à minha, à sua, à nossa visão de mundo, que entre sutilezas, brincadeiras e aparentes elogios, o racismo se desnuda, fica exposto com toda a crueldade que ele carrega.
E por falar em crueldade, o escritor Laurentino Gomes se debruçou sobre o tema e no livro “Escravidão” foi mais além do que nos acostumamos a ler nos livros de história. O escritor choca e incomoda ao trazer à luz fatos estarrecedores. Duvido que continue a ser o mesmo depois de saber, por exemplo, que o tráfico negreiro provocou até uma possível mudança ambiental.
Segundo relatos da época, o excesso de corpos descartados durante a travessia no oceano Atlântico fez com que os cardumes de tubarões passassem a seguir os navios negreiros. “Saíram da África 12 milhões e meio de seres humanos. Chegaram 10 milhões e 700 mil. Morreram na travessia 1 milhão e 800 mil pessoas. Se dividir isso pelo número de dias, dá 14 cadáveres, em média, lançados ao mar todos os dias ao longo de 350 anos”, relata Laurentino Gomes.
Temos boas novas? Felizmente, sim. Nos últimos anos o movimento negro se fortaleceu e hoje é indiscutível que há uma retomada da valorização da origem africana. E o mercado publicitário, que de bobo não tem nada, já está revendo conceitos e mudando linguagens. Sabe o criado mudo? Aquele móvel pequeno que ficava ao lado da cama? Pois, é! Mudou de nome. Agora ele é conhecido apenas como “mesa de cabeceira”.
A iniciativa é de uma conhecida rede de lojas de móveis que por oportunismo ou tomada de consciência, vai saber, decidiu abolir o termo racista e ainda criou uma campanha (#criadomudonuncamais) para estimular os clientes a reverem conceitos.
E o que é mesmo que o criado mudo tem a ver com tudo isso? Li no site da tal empresa que os escravos que faziam serviços domésticos eram chamados de criados. Alguns desses homens e mulheres passavam dias e noites imóveis ao lado da cama com um jarro d´água, roupas e o que mais o senhor ou senhora fossem precisar.
Porém, alguns senhores ficavam incomodados por eles falarem e por isso muitos chegavam a perder a língua. Até que um dia alguém teve a ideia de colocar uma mesinha ao lado da cama para apoiar objetos, que passou a ter a mesma função do escravo.
Só que dois séculos depois ainda usamos a mesma expressão pra nos referirmos ao móvel.
Parece pouco e é. Precisamos de mais. De muito mais.