“O acaso não escolhe, propõe”. Assim acreditava o escritor José Saramago. Não só ele. Para o mineiro Nelson Cruz, sua obra, sua carreira e suas conquistas foram regidas pelo acaso. Um acaso que se traduz em inspiração: “minhas ideias vêm quando estou lendo, quando visito exposições, quando acesso entrevistas de pessoas interessantes,” conta ele.
“A inspiração vem na maioria das vezes ao acaso”, diz. Inspiração que também pode ter a forma de intuição: “Tudo que eu produzi me deu respostas como mensagens em garrafas”, assegura ele.
Nelson Cruz, artista plástico, chargista, escritor e ilustrador, acaba de conquistar o Jabuti, maior prêmio literário do Brasil, criado pela Câmara Brasileira do Livro, há 60 anos. Soma-se à inspiração e à intuição do artista, sua luta. “Com tudo que aconteceu na minha vida, todo o trabalho, não perdi minha vitalidade, minha criatividade. Sei que é possível ser artista nessa vida, nesse país”, afirma.
O Prêmio Jabuti não é novidade na vida de Nelson. Ele pode ser considerado um veterano na premiação que prestigia profissionais do mundo editorial. Esta é a sexta vez que ele é premiado nos últimos 18 anos. Um feito para poucos, que o deixa orgulhoso, é claro, mas não tira os seus pés do chão. “De tempos em tempos, meu desenho me resgata, cria situações que me estimulam a outras possibilidades”, completa.
“Os Trabalhos da Mão”
Nelson conquistou o Jabuti 2018 na categoria ilustração com a obra “Os Trabalhos da Mão”. Seus desenhos dialogam com um texto de Alfredo Bosi, filósofo e professor brasileiro. Como o nome sugere, o livro fala das funções que a mão pode exercer, para o bem ou para o mal. “É um texto belíssimo, que tem um humanismo muito forte, difícil de traduzir em imagens”, comenta Nelson.
Mas Nelson parece seguir o ditado “quanto mais difícil, melhor”. Ele conta que para se inspirar pesquisou os pintores que fizeram a história da arte mundial, produzindo uma releitura de obras clássicas. “O livro ilustrado tem uma dimensão que gratifica muito quem faz e também o leitor, que recebe duas narrativas”, analisa ele.
Texto e imagem que falam a mesma língua, contam a mesma história mas são únicos, cada um com uma essência própria. Como irmãos gêmeos. Nelson comenta que não esperava ser o vencedor. Neste ano, o Jabuti teve mudanças e a premiação foi dada não a três, como antes, mas a apenas um ilustrador, escolhido entre 10 finalistas. “Como alguém tinha que levar, eu levei”, brinca.
Seria um acaso? “Não posso dizer que sou um artista que não conseguiu seu espaço. Lutei muito. Acreditava que em algum lugar havia um espaço reservado para mim. O livro é um objeto de arte que leva à reflexão, ao conhecimento. Embora me sinta nostálgico em relação à pintura, não tenho frustrações”, revela ele.
O que Nelson quer dizer com nostálgico em relação à pintura? Para entender, é preciso visitar seu passado. “Nasci artista, não me pergunte por quê. Só sei que nasci assim, com essa possibilidade”, conclui. Ele conta que todas as lembranças que tem de menino, são dele desenhando. “Pode parecer clichê, mas desenhava em tudo que eu podia. Aproveitava o verso de convites de casamento que chegavam em casa, papel de pão”, revela.
Origem humilde
Filho de um pedreiro com uma dona de casa, nascido numa família de cinco filhos, Nelson lembra que o fato mais marcante da infância foi aos 12 anos, quando comunicou aos pais que não frequentaria mais a escola. “Meus pais sofreram. Eu era um péssimo aluno. A escola não me despertava interesse”.
E como uma escola pública da periferia, onde não havia uma biblioteca, poderia atrair aquele menino vivaz que tinha a arte na alma? Crescendo numa família pobre, também não tinha acesso a livros em casa. De onde vinha então a inspiração? De tudo que seus olhos podiam ver, ele conta.
O que Nelson mais gostava de fazer era reproduzir tudo em desenho. Um menino perfeccionista, que aos 4 ou 5 anos ficou fascinado com a capacidade de usar traços para se expressar. Durante toda a infância, Nelson foi gago, o que provocou nele uma imensa timidez, só superada na adolescência, quando também se tornou uma celebridade na vizinhança. “As pessoas diziam quando me viam na rua: aquele é o menino que desenha”. A essa altura, a timidez foi perdendo sua força e o menino que desenhava encarou o mundo.
A popularidade daquele jovem artista é de certa forma revivida ao caminharmos pela Savassi, numa tarde de quarta-feira, enquanto conversamos para esta reportagem. A todo momento, somos interrompidos por pessoas que o conhecem e querem cumprimentá-lo.
Tenho a sensação de estar andando ao lado de uma pessoa ilustre e brinco com ele dizendo que não sabia que desenhistas poderiam ser tão populares quanto as celebridades. Ele se encabula, mas não esconde o prazer de ser reconhecido.
Na juventude Nelson sonhava em ser um pintor. Aos 14 anos, foi estudar no ateliê da premiada artista Esthergilda Menicucci, que ficava na Savassi. Foi nessa ocasião que, segundo conta, teve uma das maiores alegrias de sua vida. Conseguiu reproduzir com total fidelidade de traços um desenho do holandês Rembrandt, considerado, por alguns, o maior pintor de todos os tempos.
Uma biblioteca no caminho
Parte do trajeto da sua casa na periferia até o ateliê de Esthergilda era realizado a pé. No caminho, Nelson fez uma descoberta que mudaria sua vida, a Biblioteca Pública de Minas, na Praça da Liberdade. “Lá foi meu encontro fundamental com a literatura, que me deu outra visão de mundo”, relembra.
Na Biblioteca, Nelson também teve acesso aos grandes pintores da história da arte, graças ao acaso que, naquela ocasião, revelou outra face: a da curiosidade. “Havia uma sala especial onde ficavam os livros de arte. Era uma sala meio secreta, quase ninguém sabia da existência dela”, conta. Aí pergunto: Mas como você descobriu esse lugar? A resposta é singela: “Perguntei”. Simples assim.
A revelação desse lugar foi para Nelson como ultrapassar um umbral mágico. “Entrei definitivamente num outro mundo. Aí que eu soube o que era arte”, constata. Autodidata, iniciou um aprendizado que marcou sua carreira. “Nessa época, passei a ser aluno dos grandes mestres de todo o mundo, Picasso, Van Gogh, Salvador Dali, Rembrant, Portinari,” enumera.
Nas décadas de 1970 e 1980, Nelson Cruz dedicou-se à pintura. Primeiro, a experiência com tinta a óleo, depois a tinta acrílica, mais contemporânea, segundo ele. Mas as dificuldades financeiras falaram mais alto. “Aprendi com meu pai que um homem precisa colocar dinheiro em casa”, afirma. Foi nessa época que conheceu Marilda Castanha, recém-formada em Belas Artes. “Ela já sabia a carreira que queria ter. Era muito focada em fazer carreira como ilustradora”, relembra.
Alguma influência sobre você?, questiono. Ele confirma. “Comecei a ter interesse pela linguagem da narrativa visual. O trabalho de ilustração tem um lado autoral da imagem que pode ser muito explorado”, define ele.
Nelson morou em São Paulo quase dois anos na busca por uma carreira como pintor. Mas não conseguiu “desvendar o mercado das artes plásticas”, segundo sua avaliação. “O mercado editorial é mais rápido no seu retorno e funciona melhor”, resume.
Família respira arte
Nelson e Marilda namoraram, casaram-se e são pais de dois adolescentes. Uma família que respira e inspira arte. Na casa deles todos desenham, inclusive a sogra, de 92 anos, que vive lá e tem seu tantinho de responsabilidade no “dom da Marilda”.
Como não poderia deixar de ser, a influência artística está presente nos planos que os filhos fazem para o futuro. O homem é fruto do meio em que vive? “Eu sou uma espécie de negação dessa frase. Mas, existe, sim alguma influência. De qualquer forma, a arte pertence ao ser humano,” declara.
Os dois dividem o mesmo ateliê, na casa que construíram em Santa Luzia. Dividem os mesmos sonhos e são parceiros nessa caminhada da criação artística. Marilda realizou seu projeto profissional e é também uma ilustradora premiada. Mas cada um tem seu estilo, seu espaço de criação e de mercado, assegura, Nelson.
Ele explica que os dois trocam muitas ideias e informações no dia a dia do ateliê. Mas cada um é proibido de interferir na criação do outro. Para ele, esse é um momento solitário e de silêncio. “Não dá para dar palpite”, sentencia.
Antes de se dedicar à ilustração de livros, o acaso abriu outra porta para Nelson, que teve uma passagem pelas charges e caricaturas. Trabalhou em jornais alternativos como o extinto Cometa Itabirano, o Suplemento Literário e ainda o Diário da Tarde. Mas o apelo literário já era forte e irresistível.
“O espaço a gente tem que cavar, a gente é que cria”, afirma ele com conhecimento de quem, ao longo da vida, abriu suas veredas.
“O livro é hoje o suporte para exercer a minha arte”, define Nelson, que conta 22 livros publicados e se aventurou também pela escrita. Desenho e literatura, duas paixões que convivem em plena harmonia. “Optei por trabalhar literatura no livro ilustrado”, resume. “Não posso esquecer que o livro no final é também um produto comercial. Mas, no princípio ele é artístico, é idealista. O livro ilustrado é um facilitador à literatura”, explica.
Fontes de inspiração
Literatura, arquitetura e cinema. Três fontes onde Nelson vai beber para criar seus desenhos. A literatura lhe dá os personagens, o cinema o olhar da câmera com seus movimentos, seus enquadramentos, suas dimensões e a arquitetura posiciona o cenário. Esses são os elementos que ajudam a imaginação do artista a elaborar seu mundo de ficção.
Como não vivemos na ficção, questiono sobre seus planos para o futuro e ele me diz que está preocupado com o novo momento que o país viverá após as eleições para presidente. “É um outro país que surge, um país onde as pessoas estão em crise. O retrocesso vai atingir a todos. Mas é importante não deixar que o retrocesso seja tão grande.”
E o combalido mercado editorial brasileiro torna a situação ainda mais angustiante para os artistas e autores, acredita Nelson. Ele cita a carta de desabafo de Luiz Schwarcz, presidente do grupo Companhia das Letras, uma das maiores editoras do país. Ele conclama os apaixonados pela leitura a declararem publicamente seu amor, promovendo uma espécie de rede de solidariedade para não deixar que os livros sejam tragados pela crise.
Novo projeto
Nelson lembra que é fundamental nesse momento que as pessoas não deixem de criar. “Quem vai sobreviver é quem tem projetos, quem tem propostas. Quem acredita que a literatura tem muito a oferecer não só aos apaixonados, mas para estudantes, para escolas, para as pessoas de modo geral.”
E já que o acaso traz em si uma proposta, pode ser que Nelson surpreenda quem se acostumou com seus desenhos publicados em livros. Um novo projeto pode nascer nos próximos meses. Por enquanto, ele guarda segredo. Mas dá uma pista. Tem a ver com uma de suas grandes paixões.
Nelson trabalha diariamente e disciplinadamente das 9h às 19h. Mas ressalta que a inspiração surge ao acaso. O acaso presente mais uma vez e confirmando Saramago. Adquirindo a forma de proposta para a alma liberta de um artista.
Quando preciso de ideias, vou na minha estante e procuro o que me inspire. A maioria das minhas ideias surge quando estou lendo”, revela. Literatura se alimentando e se reproduzindo em mais literatura. “O próximo livro, fazer sempre o próximo livro. É o que tenho que conquistar. Criar é sempre refletir sobre algo. Quero transformar essa reflexão em arte, seja ela texto ou imagem.”
PRÊMIOS JABUTI RECEBIDOS POR NELSON CRUZ
– Chica e João (2001)
-No longe das Gerais (2005)
-Os Herdeiros do Lobo (2012)
-A Máquina do Poeta (2013)
-O Livro do Acaso (2015)
-Os Trabalhos da Mão (2018)