Pra que serve a sua cozinha? Pergunta idiota pra resposta óbvia.
- Pra cozinhar, ora bolas!
Só que não. Aqui em casa a nossa cozinha tem várias serventias. É sala de visita, copa e sala de estar. Visitas, parentes e amigos já sabem. O ponto de encontro é sempre na cozinha. Nesse espaço, até as janelas são multifuncionais. Se servem pra deixar o angu esfriando e como cenário pras fotos dos meus bolos, funcionam também como alpendre com direito a vista pra mangueira. Quer coisa melhor que ficar debruçada ali, mirando um ponto qualquer, abstraindo do mundo real? Relax total.
Mas, você deve estar ai se perguntando?
- Tá bom. Já entendi. Na sua casa a cozinha é sala de visita e a janela é alpendre. Mas e cozinhar que é bom mesmo? Nada?
Tudo. Pra você ter idéia, por aqui temos três cozinhas. Uma menor, com um fogão que é usado apenas para aplacar os apetites noturnos; outra, para as refeições e, uma terceira, que é onde cozinhamos de fato. É nela que fica um fogão enorme com seis bocas. Era o orgulho da Mamãe.
Tem também um fogão a lenha com ares portugueses. Sonho de consumo da Dona Nely. E, pasme, nunca foi usado. Ela temia que o calor do fogo pudesse trincar os azulejos. Isso foi há muitos anos. Mamãe já não está fisicamente entre nós, mas o fogão continua ali, intacto. Nunca viu fogo. Do jeitinho que ela queria.
Quando bate aquele desejo de comer algo com um sabor mais defumado, cozinhamos no quintal. Debaixo da mangueira tem, adivinhem: outro fogão. Presente do Saul. Veio do sítio de Lagoa Santa. Chegou carregado das memórias de quando a família dele também se juntava pra cozinhar. Memória dela + memória nossa e dá-lhe feijoada, cozidos, assados na chapa e outras “cositas mas”.
- Meu Deus! Mas pra que tanto fogão?
Agora, sim, a resposta é óbvia:
- Pra gente ser feliz. Nessa nossa “família muito louca, mas também muita animada”, cozinhar é sinônimo de prazer, de felicidade. Gostamos de compartilhar. De nos reunir à mesa.
Voltando aos fogões, na cozinha número 2, aquela da mesa enorme usada para as refeições, o fogão a lenha é apenas uma lembrança boa. Foi demolido. Mamãe achava que ele tinha pouca serventia. Isso faz muito tempo. Mesmo assim, eu ainda discordo.
No lugar dele a nossa querida instalou um forno elétrico. Dos “bão”. Afinal, é um “Lair”. Olha o jabá aí, gente! Quem sabe dá certo e a gente ganha um novo do fabricante? O nosso tá bem velhinho, quase entregando os pontos. Também é um tal de assar bolos e biscoitos todo santo dia.
Por falar em biscoitos, agora deu um nó na garganta. Sempre dá. Lembrei de uma história que a Mamãe nos contava enquanto amassava e enrolada pães de queijo, rosquinhas, rosca da Rainha …
A história sempre nos levava às lágrimas. Ainda leva, acredite. Havia duas famílias: uma muito rica e outra bem pobre. Todos os dias a mãe da família pobre … ihhh, acho que eu deveria dizer em situação de vulnerabilidade, de baixa renda. Ah, deixa pra lá.
Voltando à história a pobre cozinhava pra família rica. Os filhos dela ficavam em casa, esperando, ansiosos e famintos, pelo retorno da mãe. No fim do dia, depois de enrolar os biscoitos, a mãe voltava pra casa com as mãos ainda “sujas”, com resíduos da massa. As mãos só eram lavadas quando ela chegava à sua cozinha.
A mãe rica nunca entendeu porque os filhos da sua cozinheira eram tão saudáveis se mal tinham o que comer. Ela nunca soube que a mãe usava a água da bacia onde lavava as mãos para fazer o mingau que servia aos filhos. A única refeição que teriam no dia.
Ainda hoje é assim. Seja aqui em Conceição do Pará, em Belo Horizonte, Brasília ou em qualquer outro lugar que tenha uma filha de Dona Nely, a história nos move. Pra nós, o enrolar e o amassar biscoitos têm sempre mais de um sentido. É não dá outra. Assim que sair do forno, todas aquelas delícias serão compartilhadas. Essa é a missão de quem cozinha. Lição dada, lição aprendida. Afinal de contas a Dona Nely era uma mestra, tão lembrados? E das boas.
Mamãe nós deixou um grande legado. A arte de amar e demonstrar esse amor através do alimento. Todas a vezes que estou preparada algo, principalmente aqui em casa, no interior das Minas Gerais, lembro da mamãe, criando pratos deliciosos para essa família louca e muito amada.
Memórias afetivas que enchem o coração.
Essa crônica deixou um gostinho de aconchego e aquela vontade enorme de correr pra cozinha, abrir uma garrafa de vinho e tomar devagarinho na cozinha número 1 ou debaixo da mangueira.