Você já reparou como a cidade está florida? Percebeu que a floração dos ipês não obedeceu a regra das cores? Se antes, primeiro floresciam os amarelos, depois os roxos, seguidos dos rosas e dos brancos, desta vez floresceram todos de um só vez. Isso sem falar nas sapucaias. Há muitas pela cidade. As árvores estão lindas. As folhas rosadas chamam atenção. Até enganam muita gente. Há quem pense que são ipês. Só que não. As folhas rosas têm a ver com uma estratégia da sapucaia para se proteger do sol.
Mas, cá pra nós. Alguma coisa certamente está fora de ordem. Eventos extremos pipocando por todos os cantos, explosão de flores debaixo de um sol escaldante, seca prolongada, o Rio Pará e outros cursos d´ água morrendo de sede. E pensar que nem frio tivemos. Sabe-se lá o que virá por aí.
Lembro que no tempo da delicadeza as estações eram bem demarcadas. Mas nada que intimidasse o Vovô Nenê. Nem mesmo o frio que congelava até os ossos. Logo que amanhecia, Vovô atravessava a rua e repetia um ritual de todas as manhãs: só ia ordenhar as vacas depois de tomar o café com a nossa mãe. Depois convidava o Beto a se juntar a ele e então pedia à Mamãe um pouco de Toddy. Despejava o chocolate em um copo mantido sempre à mão no “cofre” do Jeep. No curral, despejava o leite espumoso, denso e quentinho no copo. O leite in natura e achocolatado ainda ganhava uma dose generosa de conhaque. Claro que com a permissão da Vovó Cocota. Sempre atenta à saúde dos netos, ela dizia que aquela bebida era um “fortificante”. Transgressão, crime? Nada disso. Naquela época era apenas mais um ato de amor e de cuidado.
Tudo isso ficou para trás. Inclusive o sabor do Toddy original. Agora, o foco está na seca prolongada e para outros eventos extremos. Não se fala em outra coisa. Para entendê-los temos à mão a explicação dos meteorologistas de plantão e das moças e moços do tempo. E quanto a explosão das flores que alegram os nossos olhos secos e cansados?
Quem desvendou esse mistério foi a engenheira florestal Thais Helena Porfírio, filha da querida Eneida Costa. “A seca prolongada provoca stress hídrico na planta. Ela acha que vai morrer, então ela explode em flores, que é seu sistema reprodutor, e esparrama seu material genético, contido nas sementes, no ambiente. É uma forma de preservação da espécie”. Gente, que lindo! É a natureza, como sempre, reagindo com delicadeza aos nossos desmandos.
Toda essa prosa devolveu à minha memória um conto escrito por Mia Couto. Na verdade, um dos meus preferidos. Se é que posso dizer isso. Amo tudo o que ele escreve. Em “Fio de Missanga” Mia Couto narra que inicialmente só existia a noite. Nela, Deus cuidava das estrelas que brilhavam igualmente. Com o nascimento do Sol, uma estrela ambiciosa e exibicionista, as outras estrelas foram ofuscadas e começaram a desaparecer. O Sol, arrogante, proclamou-se o criador de Deus e trouxe o dia, fazendo com que os homens esquecessem a harmonia e igualdade das estrelas na noite eterna. Enquanto isso, a noite que sempre foi rainha sem precisar reinar, passou a ser apenas um momento de descanso do Sol.
Pra você ver que a literatura e o mundo real em algum momento se encontram. Sonhando aqui com o momento em que a luz da lua volte a se impor, que a lua e sol se entendam e passem a dividir as tarefas. Só aí tudo voltará a se harmonizar. Que assim seja.
Indo ali tomar uma água porque o corpo está exigindo e a família está cobrando. Herança da Vovó Cocota. A cobrança – não se esqueça de tomar água- é só sinal de cuidado e de amor. Até mais.
É Gi, a coisa está difícil, só a sabedoria de”Mia Couto”e a beleza das flores para nós alegrar! Quanta vontade de voltar ao tempo da delicadeza!
Muito triste tudo isso, né? Só espero que tenha como corrigir parte desse estrago. Beijo abraçadinho pro cê.