Junho chega e, com ele, um vendaval de lembranças. A memória faz um looping (vade retro, Cíntia Chagas!) e me vejo na Fazenda dos Melos. Era lá que acontecia a primeira fogueira do ano. A imensa mesa de biscoitos era um convite à gula. Depois vinha a da casa dos meus avós. Minha avó Cocota, devota de São João, acreditava que a cura do Tio Gualter havia sido uma bênção concedida pelo santo.
Ele sempre foi um menino fraquinho, uma fragilidade que a mãe combatia com todas as armas que podia encontrar. Médicos, conselhos de amigos, até a benzeção da Comadre Isolina. Nada parecia surtir efeito. Até que Vovó fez uma promessa a São João. Pediu por um milagre. E num é que ele atendeu?
A solução veio rápida, talvez porque João e Jesus eram próximos, praticamente irmãos por causa do parentesco entre Isabel e Maria.
Com uma conexão direta com o Altíssimo, São João não hesitou em ajudar a minha avó. Mas, claro, como não existe almoço grátis, Vovó prometeu que se o milagre acontecesse, enquanto vivesse organizaria uma festa todo dia 24 de junho. E para demonstrar a sua gratidão pela cura, celebraria o milagre com as crianças da cidade. E assim foi feito. Vovô Nenê cuidava da fogueira e dos fogos de artifício, enquanto Vovó Cocota e Sílvia, sua fiel escudeira, preparavam biscoitos e doces que faziam a alegria da noite.
Mimimis à parte, fico aqui pensando na figura de São João. Está sempre pronto a ajudar. Além de curar os enfermos, como fez com meu tio, também dá uma mão aos agricultores. É padroeiro deles. Santo Antônio, por sua vez, é o santo casamenteiro, invocado por aqueles em busca de um amor. E São Pedro, o guardião das chaves do céu, é celebrado com tanta alegria e devoção por todo o Brasil.
As homenagens a esses santos têm raízes nas tradições europeias, especialmente portuguesas, trazidas durante a colonização. A cultura popular brasileira, rica e diversa, incorporou elementos próprios, transformando as festas juninas em uma das celebrações mais queridas e tradicionais do país.
Você pode estar se perguntando sobre o costume de acender fogueiras. A tradição pode ter suas raízes em rituais pagãos pré-cristãos ligados ao solstício de verão no hemisfério norte, que ocorre por volta de 21 de junho. Esse período de máxima luz solar era visto como um momento de renovação e fertilidade.
Outra explicação possível é a associação com as comemorações dos santos (olha eles aí de novo). Nelas, as fogueiras simbolizariam o fogo do Espírito Santo derramado sobre os apóstolos no Pentecostes.
Além disso, as fogueiras podem ter sido usadas originalmente para afastar maus espíritos e criaturas da noite, como lobisomens e bruxas. Com o tempo, essa prática foi incorporada às festas populares, tornando-se um símbolo das celebrações juninas.
E para me safar das intrigas entre influencers e não influencers, vamos ao que realmente interessa: as comidinhas e bebidinhas. O milho, protagonista das festas juninas, brilha em todas as mesas. Versátil, vai bem tanto em pratos doces quanto salgados. Pamonha, bolo de milho, curau, canjica, pipoca… A lista é extensa e deliciosa. E a bebida? É claro que tem! Esse friozinho de junho pede algo para aquecer o corpo e os sentidos. Que tal um copo de quentão?
Nos Melos e na casa dos meus avós tinha tudo isso. Os biscoitos e doces eram servidos em peneiras e o quentão, o café e o leite, em xícaras de vários formatos, tamanhos, cores e estampas. Se hoje isso é fashion (ops!), e sinal de modernidade, naquela época era algo natural. Com o uso, as xícaras iam quebrando. Assim, os jogos ficando incompletos e chegavam à mesa misturados. Eu amava aquele festival de pecinhas. A minha irmã Lulu também.
E não pense que o encantamento com as xicaras acabava ali, naquela noite. Continuava nas brincadeiras no quintal. As muitas gerações que viveram naquela casa centenária deixaram rastros, fragmentos. E, ano a ano, cacos de memória iam sendo sepultados por camadas de terra. Como em um sítio arqueológico. Geração após geração.
Na infância, vez ou outra, a gente garimpava um pedaço colorido dessa memória ancestral. E dá-lhe imaginação. Nas casinhas, os fragmentos ganhavam utilidade. Uma hora eram pratos; em outras, travessas e adereços.
E entre uma brincadeira e outra, a gente passava horas fantasiando sobre o achado. O que era? De quem teria sido? Como quebrou? Sem respostas, a gente se refugiava na fantasia. Assim, íamos reconstruindo histórias e fatos. Cada um criava o seu próprio enredo. Vez ou outra as histórias se entrelaçavam. Não era raro. Nas brincadeiras, os cacos, até então inertes, depois de limpos, ganhavam vida.
Drummond já falou sobre isso:
“Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara.
Sem uso,
ela nos espia do aparador.”
Esse verso é parte do poema Lição das Coisas. Elas ficam. Viram memória. Ainda bem, né?
Vi uma conexão correta entre “… as fogueiras podem ter sido usadas originalmente para afastar maus espíritos e criaturas da noite, como lobisomens e bruxas” e Cíntia Chagas.
Melhor não comentar. Risco de crise familiar. Então, vou me abster. Rsss.
❤️❤️❤️❤️
Coração quentinho.
👏👏👏👏
Obrigada! Beijos abraçadinhos.
Maravilha!
Obrigada! Beijos bem abraçadinhos.
Que texto incrível! Adorei a história das xícaras!
Obrigada ! Beijos para essa querida.