O que há por trás do arroz doce sapecado?

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Imagem - redes sociais
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Você já assistiu “Nonnas”? Ando muito mexida com esse filme. A trama é inspirada em uma história real e retrata a vida de Joe Scaravella. O ítalo-americano, para homenagear a mãe, abriu o restaurante Enoteca Maria. O diferencial? As chefs do restaurante são avós italianas, trazendo receitas tradicionais e um toque afetivo à culinária.

O filme, que explora temas como família, tradição, luto e superação, tem como fio condutor a comida e como ela pode ser um elo entre gerações. Além de aquecer o coração, Nonnas dá uma baita vontade de comer uma boa massa e só confirma o que eu já sabia: comida de avó é culinária em forma de afeto. Não sei como é na sua família, mas na minha a comida ajuda a moldar a forma como vivemos e as memórias que vão nos acompanhar ao longo da vida.

Nossos sobrinhos e sobrinhas são a prova viva disso. Entre eles há um consenso: não há nada mais gostoso que o arroz doce que minha mãe fazia. Vovó Nely herdou a receita da Vovó Cocota que, por sua vez, herdou da nossa bisavó Luiza, que …

E em se tratando desse arroz doce, um conselho: esqueça as invencionices. Nada de leite em pó para trazer cremosidade e de leite condensado para adoçar. Que bobagem! A cremosidade está no amido do arroz e o dulçor no açúcar colocado na medida. Nem mais nem menos. Só o quanto baste. Ah! Tem sempre uma pitada de sal, que é pra equilibrar o sabor. Outro segredinho: o doce só vai estar pronto depois de ir ao forno. E vai guarnecido com pedacinhos de frutas cristalizadas, coberto por uma generosa camada de queijo minas. Daí o nome: Arroz Doce Sapecado. Uma preciosidade.

Mas como tudo nessa vida, nem na cozinha temos consenso. Há quem discorde do conceito por trás da “comida de vó”. Há quem diga que essa é “uma visão machista e antiquada, que reforça estereótipos de gênero ao associar mulheres, especialmente as avós, ao papel exclusivo de cuidadoras e responsáveis pela alimentação familiar”. Há também quem vá mais longe e afirme que é “um símbolo de amor e sacrifício”, que “o conceito desvaloriza o esforço e o trabalho invisível dessas mulheres, além de negligenciar o papel que avôs, pais ou outras figuras masculinas poderiam ou deveriam desempenhar na criação e alimentação familiar”. Haja paciência!

Por outro lado, na memória da nossa família só há espaço para afeto. Muitas pessoas pensam como nós e até escrevem livros sobre o tema. A jornalista Mariana Weber, autora de “Cozinha de Vó”, diz que a comida de avó é especial porque conversa com a história da gente. “Ela (a comida) conta de onde viemos, fala de quem somos. Faz parte da nossa formação, da construção dos gostos e das memórias”.

Quer mais polêmica?  E se eu disser que a comida de vó é comida de verdade? Como sou corajosa, vou meter a minha mão em outro vespeiro. E se há quem discorde disso, está aberta a guerra “comida de vó X comida industrializada”.

Na industrializada imperam os ultraprocessados. Esse tipo de alimento foi introduzido na alimentação dos brasileiros nos anos setenta. Desde então é apontado por muitos como vilão e responsável pelo aumento do peso da população e, por consequência, pelo crescimento dos casos de hipertensão, diabetes e de outras doenças relacionadas à obesidade.

A nutricionista Soraia Batista, que não se deixou levar pela tendência, aposta na ancestralidade. “Comida é sinônimo de cuidado, afeto, alegria, festa, comemoração. Nossas avós não se preocupavam com as calorias nem se a receita levava muita ou pouca gordura, sal, açúcar, se tinha ou não glúten. O importante era estar gostoso para que todos comessem – e muito – bem”. Era, segundo ela, uma combinação de “comida de verdade + carinho + amor + uma pitadinha de magia + o conforto que o contexto dessa comida nos remete”. O resultado? “É praticamente impossível as receitas e o conceito de ‘comida de vó’ não serem tão incríveis”.

Fechamos com a Soraia. Na nossa família, cada prato é um reencontro, uma celebração de afetos que atravessam gerações. Os bisnetos não ficam de fora dessa festa de sabores e memórias. Gabriela sempre pede o strogonoff da Vovó Gyslaine, enquanto Rafinha, com sua fome generosa, não recusa nada, especialmente tomate e batata frita. Miguel, ainda fiel ao peito da Iara, desconhece os sabores que marcaram a infância compartilhada, mas sua mãe suspira ao lembrar do arroz doce da Vovó Cocota, do biscoito de queijo com erva-doce e do arroz de forno com camarões de latinha.

Tem também as lembranças que não vêm da convivência, mas das histórias que nos atravessam como um legado invisível. Sofia entende bem esse sentimento. Foi o livro de receitas da Vovó Nely que a guiou para aquela que foi a sua primeira tentativa de bolo. Aquele desastroso, no qual o sal tomou o lugar do açúcar. E há também o cundito da Vovó Nely, receita aprendida com a Vovó Cocota e enriquecida pelo toque do zimbro da Vovó Lygia. O prato ancestral segue firme na panela das duas famílias. É como um elo de afeto, um tempero que mistura passado e presente.

Eu poderia me estender aqui e falar por horas sobre o charuto, sobre o doce de casca de mexerica e sobre a torta de amendoim servida em ocasiões especiais. Mas vou me ater ao cardápio apresentado até agora. Toda essa prosa me estimula a fechar os olhos para sentir o perfume do bife na chapa do fogão a lenha e do feijão repousando na última trempe, aquecendo não apenas a casa dos meus avós, mas também a saudade dos tempos da delicadeza.

1 COMMENT

  1. Eu tenho poucas lembranças do passado, mas nada se compara ao tempero dos avós. Até Hoje sinto sabor de uma costela que minha avó fez na roça!! Ao fogão de lenha, tempero caseiro!! Desde então costela cozida virou meu prato predileto! Eterna lembrança dos avós… amém a crônica.😍😍

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