Histórias do arco-da-velha

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Caderno de receitas, uma relíquia da Família Bicalho - Foto - arquivo pessoal
  • Nossa, Gisele, você anda tão saudosista! Vira e mexe tá remexendo no seu baú de memórias.

Verdade. Estou bem assim mesmo. Minha zona de conforto encontrou abrigo no firmamento da memória. Por lá, a vida segue em céu de brigadeiro. E por falar em brigadeiro, em memória, uma das coisas que mais gosto são os cadernos de receitas herdados da Mamãe e da Vovó. Neles, a maior parte das receitas tem nome próprio. Se foi presente da amiga é Bolo Aparecida. Tem também o Bolo Gelado da Amélia, os Bolos de Fubá da Bete e da Irani. Outras, nem cheguei a conhecer. É o caso da Cecília que dá nome a mais um bolo e a Vânia que virou Pão de Ló. Há também a rosquinha que foi servida à Mamãe por uma irmã de caridade de Divinópolis. Essa veio para o caderno, obviamente, seguindo a “linha editorial” da Mamãe, como Rosquinha da Irmã (ops!).
Vovó Cocota empresta o seu nome a vários quitutes. Não é pra menos. Ela era uma cozinheira de mão cheia. Herdamos inúmeras receitas dessa nossa querida. Tem receita de bolo, de pratos doces e salgados, de roscas e biscoito, o mais famoso deles, e não podia ser diferente, de pão de queijo. Nesse caso, tem também o da São do Raul e de outras cozinheiras e quituteiras que fizeram história na cidade.
Minha outra avó, a Libéria, virou sinônimo de sequilho e Dona Zilda, de biscoito de polvilho.

As homenagens e referências continuam nas páginas seguintes, todas anotadas amorosamente pela letra elegante e inconfundível da minha mãe: Biscoito Edite, Rosquinha da Marilene, Rosca da Dona Bilica, Rosca da Belinha, Rosquinha da Arlene, Rosquinha da Bete, Biscoito de Queijo da Catarina, Biscoito da Sinhá, Rosquinha Mariana, Casadinho da Ana Maria, Bombom de Abacaxi da Mamãe (olha a Vovó Cocota aí de novo), Bombom Margarida. Sobrou até para mim. Em uma das páginas lá está a minha Torta de Ricota. Que honra!
Tem também nome engraçados. Uns são até bem conhecidos. É o caso do Mané Pelado, do João Deitado, Beijo de Freira, Olho de sogra, Rosca da Rainha e do Biscoito My love. Há também nomes que caíram em desuso por serem considerados politicamente incorretos. Um deles é o Beijo de Mulata. Há quem não se incomode em usar essa palavra. Caetano, por exemplo, até a elogia. Diz que é sonora. Mas a maioria desaprova. O uso desse termo remonta ao século XVI, período da escravidão, época infeliz da nossa História, em que os filhos de homens brancos e mulheres negras escravizadas eram comparados a animais de carga conhecidos como mulas. Melhor deletar. Na nossa família isso até virou regra. Lulu, uma das minhas irmãs, refere-se ao Bolo Nega Maluca como “Maria Maria”.Ihhh, olha eu aí abstraindo como de hábito.

Mas voltando ao início dessa nossa prosa, nos últimos tempos tenho me lembrado muito de uma musiquinha que Vovô Nenen cantava para a senhora que lavava as roupas da casa. Só que ele, marotamente, mudava o verso. Isso sempre rendia boas gargalhadas, principalmente dela. O original era assim:
“Maria Cachucha com quem dorme tu?
Eu durmo sozinha, sem medo nenhum.
Como era a versão do meu avô? Prefiro me abster. Deixo para a imaginação de vocês. E como a curiosidade matou (ops!) o gato, não me contive e lá fui eu pesquisar pra saber quem foi essa tal de Maria Cachucha? Pesquisa daqui, pesquisa dali, fiquei sabendo que a origem da personagem é um tanto nebulosa.

Uma das teorias é que no século XX uma mulher chamada Maria Purificação da Silva, conhecida como “Maria Cachucha” tenha vivido em Torres Vedras, cidade vizinha a Lisboa. Embora tenha sido, segundo a pesquisa, uma figura singular na comunidade, não há evidências claras de que tenha dado origem à expressão. Outra teoria sugere que o termo pode ter vindo de uma dança popular espanhola do século XIX chamada “cachucha”. Esta dança era executada geralmente por uma pessoa com castanholas, ao som de guitarras. Há também a possibilidade de que “Maria Cachucha” tenha sido um personagem de canções populares do século XIX. Todas retratavam a personagem de maneira pouco lisonjeira, sugerindo que ela seria uma mulher de má reputação (ops!).
Teorias à parte, a Maria Cachucha que eu conheci mora amorosamente na minha memória e foi personagem importante dos meus tempos da delicadeza.
Ficando por aqui porque já me estendi demais. Indo. Até mais.

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