A briga de São Pedro com o Vovô

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Imagem - Pixabay
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Demorou, mas, felizmente, a chuva veio. Ninguém aguentava mais aqueles dias e noites de calor extremo. Agora é chuva que não acaba mais. Eu adoro. Sempre fui fã. Gostava e ainda gosto do barulhinho bom, do antes da tempestade, do durante e do depois. Se tenho medo de relâmpago e trovão? Nem um pouco. Até acho que tá na minha genética. Lembro até de um caso do Vovô Nenê que virou lenda na nossa família. Toda vez que chove forte sempre tem alguém que lembra. E aí lá vem causo.
Chovia muito forte. Nada que assustasse o vovô. Naquele dia, mesmo com relâmpagos riscando o céu, cachorros acuados debaixo das camas, lá estava ele. Postado ao lado da janela de guilhotina, segurando o indefectível cigarro Continental sem filtro entre os dedos da mão direita. A cada trovão e relâmpago, Vovô gritava a plenos pulmões:

  • Pedrinho, Pedrinho! Manda outro que esse foi fraco!
    A chuva só aumentava. Os relâmpagos e trovões também. Vinham cada vez mais fortes. E Vovô na mesma toada, repetindo que ainda estava fraco. Imagine! Um simples mortal desafiando Zeus. Aquilo tinha tudo pra dar errado. E deu. Vovó Cocota, agoniada, até que tentou avisar.
  • Nenê, para com isso! Não se pode dizer esse tipo de coisa. É pecado.
    Deus (ou Zeus) estava muito irritado. Como que um mísero humano ousava tentar desafiar as leis celestes? A resposta veio em segundos. Um raio caiu bem próximo à janela de guilhotina. A energia dispendida foi tanta que jogou Vovô contra a parede. Caído ali, ainda segurando o cigarro, ainda tonto, gaguejou:
  • Ah, não, Pedrinho! Com você a gente não pode nem brincar.
    Piada? Que nada! Verdade pura. História real. Papai, meus tios, irmãos e primos se encarregaram de espalhar o feito pelos quatro cantos.
    Lembro do Vovô em fins de tarde, quando ficava assistindo a chuva se formar lá pelos lados da Fazenda do Macuco. Junto dele sempre tinha um dos netos que perguntava:
  • Vovô, por que quando chove faz tanto barulho?
    A resposta já estava na ponta da língua.
  • Uai! Esse barulho todo é porque o Pedrinho tá arrastando os móveis. Hoje, vai ter festa no céu.
    Histórias de família a parte, a verdade é que a chuva quando não vem em excesso é como uma mágica. Gera energia, move moinhos, rende alimentos no campo, jardins floridos, poemas e canções.
    Tem aquela do Lobão que eu adoro: “Chove lá fora e aqui tá tão vazio (…)”. E você há de convir que essa melodia e essa letra têm tudo a ver com dias chuvosos. Tem também “Planeta Água”, um clássico de Guilherme Arantes: Gotas de água da chuva/ Alegre arco-íris, sobre a plantação/Gotas de água da chuva/ Tão tristes, são lágrimas na inundação (…)”.
    E vai me dizer que você não conhece “O Menino Que Carregava Água Na Peneira”? Quando a gente pensava que Manoel de Barros já tinha nos ofertado toda a sua singeleza e talento, eis que ele veio com essa belezura de poema:
    “Tenho um livro sobre águas e meninos.
    Gostei mais de um menino
    que carregava água na peneira.
    A mãe disse que carregar água na peneira
    era o mesmo que roubar um vento e sair
    correndo com ele para mostrar aos irmãos.
    A mãe disse que era o mesmo que
    catar espinhos na água
    O mesmo que criar peixes no bolso.
    O menino era ligado em despropósitos.
    Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
    A mãe reparou que o menino
    gostava mais do vazio
    do que do cheio.
    Falava que os vazios são maiores
    e até infinitos.
    Com o tempo aquele menino
    que era cismado e esquisito
    porque gostava de carregar água na peneira
    Com o tempo descobriu que escrever seria
    o mesmo que carregar água na peneira.
    No escrever o menino viu
    que era capaz de ser
    noviça, monge ou mendigo
    ao mesmo tempo.
    O menino aprendeu a usar as palavras.
    Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
    E começou a fazer peraltagens.
    Foi capaz de interromper o voo de um pássaro
    botando ponto final na frase.
    Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
    O menino fazia prodígios.
    Até fez uma pedra dar flor!
    A mãe reparava o menino com ternura.
    A mãe falou:
    Meu filho você vai ser poeta.
    Você vai carregar água na peneira a vida toda.
    Você vai encher os vazios com as suas peraltagens
    E algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos.
    Indo porque acho que já lhe cansei com meus “despropósitos”. Vou ali carregar mais água na peneira. Vovô Nenê, que há tempos anda fazendo peraltices com São Pedro lá pelas bandas do céu, vai me entender. Você também. Pelo menos é o que eu acho. Vai saber, né?

2 COMMENTS

  1. Essa história de festa no céu fez parte da minha infância. Eu acreditava piamente porque na minha casa tinha uma mesa que, ao ser arrastada, fazia um barulho semelhante a trovoada. Era bom pensar assim, amenizava o medo. Até hoje eu gosto de ver raios riscando o céu, tanto quanto gosto de fogos artifício.

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