Tá aí o Guimarães Rosa que não me deixa mentir. “Só se pode viver perto de outro e conhecer outra pessoa sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”.
Se ele está certo? Certíssimo. Mas aonde é que se esconde esse “amor roseano”? Não sei você, mas só encontro descanso da loucura do desamor na minha “casa”. De qual casa estou falando? Entendo a sua dúvida. Afinal, vivo de cá para lá. Poderia mesmo ser a estrada. Conheço cada palmo da BR-262. Sigo por ela de olhos fechados. Sei de cada curva, de cada serra, de cada oscilação na pista.
Tem também a casa da Serra e a casa de Conceição do Pará. Mas não é sobre endereços e estradas que estou falando. O abrigo mora no colo do meu Velho Osvaldo. É pra ele que volto quando me sinto assombrada, quando não vejo saída, quando a estrada e esse mundão sem fim não me bastam. Mesmo fragilizado, com a saúde abalada, ele está ali, pronto para acolher quem, como eu, está sempre voltando. Talvez Mia Couto tenha se inspirado nele. É tal e qual. Vai saber por onde caminha a alma e o coração desse escritor de além-mar, né mesmo?
“Sei dos filhos
pelo modo como ocupam a casa:
uns buscam os recantos,
outros existem à janela.
A uns satisfaz uma sombra,
a outros nem o mundo basta.
Uns batem com a porta,
outros hesitam como se não houvesse saída.
Raras vezes sou pai.
Sou sempre todos os meus filhos,
sou a mão indecisa no fecho,
sou a noite passada entre relógio e escuro.
Em mim ecoa a voz
que, à entrada, se anuncia: cheguei!
E eu sorrio, de resposta: chegou?
Mas se nunca ninguém partiu…
E tanto em mim
demoram as esperas
que me fui trocando por soalho
e me converti em sonolenta janela.
Agora, eu mesmo sou a casa,
casa infatigável casa
a que meus filhos
eternamente regressam.”
E já que estamos aqui nessa prosa sobre amores e abrigos, que tal ir pra cozinha? Pra hoje temos uma receita de bolo de poesia.
“Bata as claras em neve. Deixe bem leve. Agregue as gemas, a água, o açúcar, o fermento e a farinha. Mexa com mãos de rainha. Suavemente, delicadamente. Corte o bolo ao meio, e coloque o recheio: chantilly com creme de anis estrelado e letrinhas de chocolate ao leite dourado. Faça um retângulo em cima do bolo, escreva a seu gosto a palavra poesia. Sem dúvidas um bolo encantado. Decore com chantilly o restante das letrinhas e o creme de anis estrelado”.
Epa! Essa receita não é a minha. É da Leny Mell. Mas, confesso, é pura inspiração. Se é assim, mãos à obra. Não percamos mais tempo. É fim da safra de mexericas.
Escolha as mais bonitas, as mais brilhantes. As pequenas e perfumadas. Retire as sementes, pique as frutas e acomode os pedaços dentro do copo de liquidificador. Junte manteiga, ovos e açúcar. Bata até virar um creme espesso. À parte, em uma tigela, peneire a farinha, o sal e o fermento. Misturei bem. Delicadamente junte o creme aos secos. Verta a massa para uma forma untada e polvilhada com farinha. Leve ao forno pré-aquecido a 180 graus. Depois de assado, umedeça a belezura ainda morna com uma mistura de suco de mexerica e açúcar. E aí está. Sem recheio, mas com poesia. Sempre.
Ah, e para acompanhar, que tal um café bem perfumado e quentinho à moda da Fernanda Young? Então, é pra já. “Depois o café esfria. Depois a prioridade muda. Depois o encanto se perde. Depois o cedo fica tarde. Depois a vontade passa. Depois não.”
E mais uma vez, Mia Couto: “Se tivesse que arrumar não era a casa. Arrumaria, sim, as coisas que não existem, os sussurros e suspiros que se acumulam pelos cantos.”