Ihhh, comadre, nem te conto!

4
1424
Os pontos de ônibus, sempre limpos e bem-cuidados, são uma constante nos doramas da Coreia do Sul. Imagem - redes sociais
Os pontos de ônibus, sempre limpos e bem-cuidados, são uma constante nos doramas da Coreia do Sul. Imagem - redes sociais

 Ainda outro dia surpreendi os colegas de trabalho ao confessar que gosto de andar de ônibus. Gosto de ouvir as conversas alheias. Me distrai. As pessoas têm pressa e acabam usando os deslocamentos para botar a conversa em dia. E dá-lhe papo ao celular.  Mais de uma vez já corri o risco até de palpitar. E antes que alguém comente, não, eu não sou fofoqueira. É que me alimento de histórias. E essas do mundo real são as melhores. – – –

  • Comadre, você ficou sabendo que aquela vizinha do 204 andou aprontando de novo? Ihh, nem te conto.

Só que conta. Conta em detalhes, em alto e bom som. No fim, todos que estão no ônibus ficam sabendo o que a pobre da vizinha aprontou. Nesse dia, não deu para saber mais. A passageira bisbilhoteira desceu no ponto seguinte.
Nessa semana, foi uma sósia da Martinália que chamou a minha atenção. Pouco mais de sete horas da manhã e dá-lhe papo compartilhado com outras vinte pessoas que faziam o mesmo trajeto. Ainda tentei me distrair com um belíssimo manacá da serra que há dias está enfeitando a entrada do Parque Municipal. Na verdade, são dois manacás, ambos exagerados na beleza.
Mas voltando às conversas paralelas, há muitas pérolas, a maioria impublicáveis. Não são só as conversas. Também me distraio com as pessoas, personagens reais de cenas reais. Há um jovem pai que usa o mesmo ônibus que eu. Todos os dias, no mesmo horário ele leva o seu filho para a creche. É supercuidadoso e amoroso. A relação de confiança é tamanha que o bebê, apesar do barulho, das sacolejadas e das curvas fechadas, dorme a sono solto durante todo o trajeto. Hoje, coincidiu de assentar no mesmo banco que ele. Na hora de descer, ofereci ajuda que o pai, gentilmente, recusou.

  • Não precisa. Obrigada! Estou acostumado.

Essas idas e voltas de ônibus também são ótimas para estabelecer laços de amizade. Diariamente fico de trelelê com duas cuidadoras de idosos que conheci no ponto do “2102”.  Delas, só ouço elogios sobre o idoso acamado que está sob os cuidados das duas, sobre o que o senhor é amável, o quanto é gentil demais, a melhor pessoa que já conheceram. E que mesmo muito doente, não dá o menor trabalho. Que é um prazer cuidar dele.

Se o quadro do idoso piorou, sofro com elas; se melhorou mesmo que seja só um pouquinho, comemoramos. E haja sorrisos. Nesse ponto de ônibus da Serra as conversas fluem naturalmente. Há também um passageiro jovem que sempre se distrai de olho no celular. Como sei que ele usa o União-Sion, para que não perca o ônibus, dou o sinal para que o ônibus pare e aviso:

  • Seu ônibus já chegou.

Em troca ganho um lindo sorriso. Quer coisa melhor?
Diz a minha amiga cuidadora que a isso dá-se o nome de civilidade, empatia, amabilidade. A verdade é que, não importa o nome, fazer esse favor para o jovem do ponto de ônibus adoça a minha manhã.

Ah, tem também o motorista. É sempre o mesmo. Apesar de jovem, é taciturno e está acima do peso. De tanto insistir no sorriso e no bom dia, como resposta até já recebo algo assemelhado a um sorriso. Pouca coisa, mas, quem sabe, né? Se tivesse mais intimidade, até diria a ele que a vida nem é tão ruim assim, que é preciso se alimentar com mais qualidade, que é preciso que ele se exercite e que beba muita água (helloooo, Gisele! Quem é que tem que fazer exercícios, comer melhor e tomar água, heim? Até parece.)

De volta ao ponto de partida (epa!), se você usa o transporte coletivo de Belo Horizonte deve estar achando que sou maluca. Se não usa, certamente fica sabendo pela internet e pela imprensa que a qualidade passou longe desse serviço.

Na ida, talvez pelo horário, o ônibus oferece um pouco de dignidade aos usuários. Está limpo e raramente alguém fica de pé. Só que o retorno para casa é um desastre. Já fiquei mais de 40 minutos no ponto da rua Tamoios esperando pelo coletivo. Sujeira, violência, miséria.  Nesses momentos dá vontade de morar em Seul.

Na Coreia do Sul os ônibus servem como cenários para lindas histórias de amor. São limpos, todo mundo no seu devido lugar, ar-condicionado, uma maravilha. E os pontos, então? Todos limpos, cobertos, seguros. Uma belezura. Conheci esse serviço nota 10 assistindo aos doramas. Fico encantada.

Ah, já sei. Você tá achando que só eu sou a “louca do busão”? Que nada! Lendo o Antônio Pimentel descobri que ele também se diverte ouvindo as conversas do coletivo. “Não sou bisbilhoteiro contumaz, mas a viagem é longa e o povo fala alto. Escuto, registro e me divirto. Não há assunto reservado ou proibido no busão. As narrativas, para usar um termo da moda, são diversificadas: brigas entre vizinhos, fofocas detonando amigos, parentes e colegas de trabalho, desventuras amorosas, feitos sexuais, avaliações estéticas e muito mais. A vida alheia é o principal nutriente dos papos. O celular contribui para o falatório desabrido.”
Num falei? 

4 COMMENTS

  1. Sei bem o que são estes momentos,Gisele.Me transportei para um tempo que tivemos o prazer de compartilharmos a mesma residência no centro.Pegava o ônibus na rua Goiás e ele dava uma volta gigante pelo centro até pegar a avenida Antônio Carlos e a viagem era longa até o bairro Leblon( não se iluda, é só o mesmo nome)que fica lá bem depois da Pampulha.
    Ouvi coisas “do arco da velha”, participei de momentos inacreditáveis e ouvi coisas impublicáveis tbm.E olha que está foi só umas das rotas que usei.Revisitando a memória chego a conclusão que dá um livro só de histórias cotidianas no coletivo.
    E eu sou das suas, já quase perdi o ponto para terminar de ouvir casos que estava prestando atenção e não podia perder o desfecho.
    Mas te conto num encontro que estamos nos devendo.
    Aproveito para agradecer, a leitura dos seus textos são um afago,uma volta a sentimentos, sensações e histórias vividas e me fazem muito bem.E deve fazer bem a muita gente tbm…

  2. Kkk muito boa a crônica e as histórias. Parabéns Gisele. Sobre o motorista carrancudo, tava pensando aqui. Deve ser depressão pq “Tudo na vida é passageiro, menos o trocador e o motorista”. Como dizem. Rs

  3. Muito bom Gi, eu também já passei por isso… é cada história!!!Mas eu bem que prefereria andar em ônibus como os da Coreia do Sul e bem acompanhada de preferência!

LEAVE A REPLY

Please enter your comment!
Please enter your name here