A memória é um tipo de sabor

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Imagem - Pixabay
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Meus avós paternos foram hoteleiros. Isso faz tempo. O hotel ficava lá em São Gonçalo do Pará. Aqui pertinho. Papai conta que as instalações eram muito boas, mas o que atraia mesmo os hóspedes era a comida.

  • Vinha gente de longe só pra experimentar os pratos preparados pela sua avó, diz Papai com um orgulho que salta aos olhos.

Na época, o Velho Osvaldo tinha pouco mais de nove anos. Ele conta que ia pra janela no segundo andar do sobrado e ficava por ali observando o que acontecia na igreja. A Matriz ficava bem em frente. Quase em linha reta.

  • Dava até pra ver o Padre celebrando.

Mas essa lembrança dura pouco. A ela se sobrepõe outras mais saborosas. Logo o Velho Osvaldo volta à falar sobre as gostosuras que saiam da cozinha do hotel.

  • Você é muito parecida com a sua avó Libéria. Se sumiu já sei que está na cozinha. Sua avó também gostava muito de cozinhar. Tudo o que fazia era bom.

Enquanto fala vai destampando as panelas. Se estou preparando arroz, já sei. Ele vai pedir pra provar do primeiro caldo. Pode parecer estranho ao seu paladar. Caldo de arroz? No mínimo, é esquisito, né? Quem mais aprecia caldo de arroz pré-cozido?  Só o Papai mesmo.

É tipo um ritual: assim que o cheiro do alho cai na banha quente a casa se enche de perfume de comida boa. Aí, não dá outra. As glândulas gustativas carnavalizam a boca, atiçam os sentidos e lá vem ele.

  • Esse cheiro chegou lá na varanda. Lembrei da minha mãe. Vim ver o que você tá fazendo pra nós.

Essa é a deixa. Já sei que ele vai ficar por ali esperando que o arroz seja refogado, temperado, até que receba a primeira água. Duas conchas cheias já bastam pra fazê-lo feliz. A partir daí é causo que não acaba mais.

Ah, tem mais. Está faltando um complemento.  Esse é tiro e queda.

  • Tem alguma coisa forte pra gente beber?

Coisa forte significa uísque, cachaça ou conhaque. Papai é chegado num destilado. Depois de uma dose e de um estalar de língua lá vêm mais causo e mais um pedido:

  • O que você fez de tira-gosto pra gente?

O tempo vai passando e entre um provinha aqui, um tira-gosto ali e um traguinho goela abaixo, a refeição fica pronta.

Mesa posta, comida servida, Vovó Libéria volta a ser pauta da conversa.

  • Essa couve tá igual a da sua avó. Uma delícia. O chuchu também. Gosto assim. Bem verdinho. E lá vem receita:
  • Minha mãe, além de cozinhar bem, era muito econômica. Não desperdiçava nada. Aproveitava até os talos da couve e de taioba. Tirava as fibras, cortava bem fininho, depois refogava  no alho picado bem miudinho. Temperava com sal e uma pimentinha. Ai colocava água e cozinhava até amaciar. Ficava muito bom com carne de porco, angu, arroz e feijão.

Ele não fala, mas odeia comida de geladeira. No almoço ou no jantar, a comida tem que estar sempre fresca.

À mesa, diante do olhar desconfiado, há que se repetir o mantra:

  • Pode comer, Papai. Está bem fresquinho. Cozinhei o feijão antes de começar a preparar o almoço. Não é de ontem. Truques culinários à parte, o que vale é a palavra empenhada.

-Se você está dizendo, vou experimentar. Esse feijãozinho está com a cara ótima.

Se o Papai come de tudo? Quase. Nem pense em misturar doce com salgado. Maçã na maionese, passas no arroz, abacaxi na salada…?  Tudo isso passa longe do prato dele. Mas se for um arroz com feijão bem feito, uma couve com angu e carne de porco, aí sai de baixo. É apetite pra ninguém botar defeito. Bate um pratão. Ah, sopa vai para o “trending topics” aqui de casa.

Essa conversa toda me deu uma fome de leão. Ah, lembrei de uma coisa. Há poucos dias assisti a uma série asiática sobre o dia a dia de um chef de cozinha com formação francesa. Em uma das cenas o personagem, enquanto preparava o prato que serviria para a assistente, disse: “a memória também é um tipo de sabor”. Não duvido disso. Aqui em casa, essa afirmação do chef cai como uma luva.

4 COMMENTS

  1. É sempre assim! Você traz o cheiro, o frescor, a essência do que vai na alma de uma pessoa que também viveu as suas emoções!! Não saí da “cozinha” enquanto lia sua crônica! Senti todo o perfume desse momento como se fosse o meu. Mesmo sendo tão rápida a leitura a viagem por essas linhas são longas e cheias de saudades!! Saudades boas que ficarão eternamente na memória até o dia do reencontro, naquela mesa grande perto daquele fogão de lenha …
    Obrigada, querida Gisele, pelas lembranças!!

  2. Com tanta lembrança boa, escrita magistralmente, minha vontade é de ir pra cozinha e fazer qualquer coisa que perfume a casa e aqueça o coração. Ótimo texto

  3. Verdade amiga e cada sabor….
    Tô parecendo seu pai, nesse tempo de “isolamento” fico esperando o dourar dos temperos pra adentrar na cozinha aqui em casa e beliscar… buscando degustar minha pinga e tirando o gosto…
    Saudades!

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