Tudo começou quando fui escolher uma travessa pra servir a salada do almoço. Piloto automático, optei pela de sempre: uma bem antigona, de um jogo comprado pela mamãe há décadas.
- Ihhh, Tia! Cuidado pra não quebrar. A fábrica fechou.
Take 01: cara de espanto. 😲
O alerta era da Ana Júlia, nove anos, dona de uma vasta formação ancorada nas redes sociais.
- Uai, Juju! Como é que você sabe disso? Quem lhe contou?
- Vi no Tik Tok, né Tia Gisele?
Ainda me recuperando do susto, fui surpreendida pelo Bernardo, 12 anos, com uma carga imensa de conhecimento. Tudo adquirido no insondável mundo dos jogos digitais.
- A Juju tem razão. Se essa travessa quebrar você não vai achar outra. É Duralex. A marca existia desde 1945. Foi criada no fim da Segunda Guerra Mundial. Quebrou por causa da pandemia.
Take 2: cara de mais espanto ainda, quase surtando. 😲😲
- Oiiii???? Helooooo??? Como assim? Tudo isso o Be ficou sabendo jogando?
O pior (ou melhor?) é que sim. Sei que nesse momento você deve estar ai matutando. Por que o espanto, Gisele? É só você que não sabia disso?
Sabia, sim. Só não tinha noção de que esse assunto tinha extrapolado o universo adulto. Aposto que você também não.
Sobre a extinção da marca, confesso que sofri com a notícia. Por aqui, as louças Duralex sempre foram as nossas queridinhas. Em casa havia jogos e jogos. Como a maioria das donas de casa, Mamãe foi seduzida pela promessa de ter louças “inquebráveis” em casa. Quase, né? Poucas sobreviveram ao tempo e à rotina do tira da gaveta, usa, lava, seca e guarda. Hoje, além da travessa grande, ainda há duas rasas, um prato, uma xícara e um copo pequeno.
No piloto automático ou não, a verdade é que usar a louça Duralex mexe comigo. Travessa, xícara, copo ou prato, todos são uma espécie de corredor que une a cozinha à sala de jantar e ao quarto da infância. É como diz o Fabrício Carpinejar. São ligações internas, interurbanos com a alma. Sem esse corredor, recortes de tempos da delicadeza, a casa não conversa e você não se escuta mais.
Redobrando os cuidados para não quebrar os Duralex sobreviventes ao tempo e à pandemia. Pela sobrevivência da alma, que de inquebrável não tem nada. Assim como as asas e o coração que andam mais partido que nunca.
E quem não tem essa relíquia em casa? Todo mundo tem pelo menos um pratinho ou xícara que sobrou de um jogo.
Melhor já ir treinando o desapego de coisas, plantas, animais e pessoas porque dói à beça separar-se de uns e outros, ainda que a gente esteja careca de saber que nesse mundo tudo é transitório, estamos aqui de passagem, ninguém fica pra semente, etc, etc.. Inquebrável mesmo só o que a gente é de verdade, o que a gente trouxe e vai levar, nossa marca registrada, nosso DNA e código de barras, impressão digital, intransferível, personalizada e única. De tudo o mais a gente se despede um dia, de cabelos e dentes também, quando a idade chega, mas assim como as árvores rebrotam após a poda, mais belas e viçosas do que nunca, NÓS TAMBÉM.