Adélia Prado pressentiu há anos: o “progresso tecno-inológico” transformaria o mundo. Quando esse futuro chegasse, previu, ninguém mais se sentaria à sombra para descascar laranjas. Nunca mais o sumo anunciaria as tardes de domingo. Restaria apenas o país da memória. Aí ela escreveu um poema e o futuro chegou.
E como previsto por Adélia, hoje o refúgio é nesse tal país da memória. O simples ato de descascar laranjas destrava portas, escancara janelas e me leva sem escalas para os quintais da minha infância.
No pomar da casa dos meus avós, como no paraíso, havia frutos proibidos. Só poderiam ser colhidos pelo nosso avô Neném. Não era o caso das laranjas campista. Mas ai de quem colhesse uma laranja tangerina. Era bronca na certa.
Você deve estar ai se perguntando:
- Pra que tanta proibição? Tudo isso por causa de um pé de mexerica?
So que não era mexerica. Era uma laranja de casca lisa. O miolo era alaranjado e o sabor, muito ácido. Eu amava aquilo. Vovô dizia que era rara. Devia ser mesmo. Nunca mais a vi. O pé não existe mais. Meus avós também não. E o quintal anda se desfazendo aos poucos. Felizmente, ainda resiste no país da memória.
A gente amava quando o Vovô reunia a criançada para chupar laranja bahia. Aquela do umbiguinho de fora. Ele usava um canivete afiado. E pacientemente ia descascando a laranja até que da casca só restasse um fita longa e alaranjada. O gran finale era o corte no alto. Profundo e perfeito. Uma obra de arte.
Tinha também os passeios aos pomares dos amigos. Vovô juntava a meninada no jeep e lá íamos nós para os laranjais dos amigos do Palmital. Éramos figurinhas carimbadas nos pomares do seu Augusto. Do Quito e do Hugo Simões também . Nesses quintais as laranjeiras pareciam árvores. Eram enormes. Ou talvez nem fossem tão altas assim. É que a gente as via da nossa perspectiva.
Em outro domingo o destino era a Fazenda do senhor Antônio do Euclides. Ficava de frente para a barragem da Usina. O laranjal era imenso e dele a gente enxergava recortes do Rio Pará. Um deslumbramento. A casa ainda está lá, bem no alto da colina. O seu Antônio e o pomar, não. Felizmente ainda há o pais da memória.
Nosso pai se revezava com meu avô nessa tarefa. A gente se empoleirava na carroceria do caminhão e lá iamos nós contra o vento para o pomar do Chiquinho Maria, aos pés da Cruz do Monte. Outras vezes o destino era a fazenda do Zé Tristão, na Cachoeirinha. Que delícia.
Mas, voltando às laranjas, se naquele tempo a gente se fartava com a campista, bahia, seleta e com a laranja lima, hoje a pera predomina. Oh, laranjinha sem graça! Vez ou outra, dou sorte e festejo uma bahia reinando solitária na gôndola do supermercado. Ai, não resisto e ela vai direto pro cesto. Pra eternizá-la por mais tempo faço geleias e bolos.
Ah, nos tempos imemoriais tinha também a laranja da terra. Vovó colhia uma boa quantidade. Depois tudo ia direto para o tacho da “comadre” Isolina. E o que era fruta virava compota. Deliciosa.
Sobre Adélia, duvido que você não conheça. Mesmo assim e como eu sou dessas e compartilho tudo o que é bom e que comove, aqui está o poema:
Pra comer depois
Na minha cidade, nos domingos de tarde,
as pessoas se põem na sombra com faca e laranjas.
Tomam a fresca e riem do rapaz da bicicleta,
a campainha desatada, o aro enfeitado de laranjas:
‘Eh bobagem
Daqui a muito progresso tecno-ilógico,
quando for impossível detectar o domingo
pelo sumo das laranjas no ar e bicicletas,
em meu país de memória e sentimento,
basta fechar os olhos:
é domingo, é domingo, é domingo.”
Memórias de infância. Como não se emocionar. Exemplo para os pais e crianças de hoje. Deixem os smartphones, Netflix, jogos e se joguem nessa maravilhoso viagem à simplicidade e o convívio com os seus. Quem sabe vocês ainda possam ter um baú de lembranças para que no futuro possam abri-los também. Parabéns Gisele Bicalho.
Nada como chupar laranja no pomar de um domingo no interior de Minas. O caldo da fruta escorrendo pelas mãos denuncia a simplicidade da essência da vida!
Quando era criança, com sete irmãos, disputávamos quem chupava mais laranjas. Eram baldes e baldes! Hoje, antes de descascar, faço furinhos na casca pra sentir o cheiro e encontrar de novo meus irmãos naquele pomar, na fazenda Esmeril. Amei o texto, Gisele!
Lindo texto, me traz de vota a minha infância, também povoada por laranjas e mexericas. E por um avô com um canivete e uma laranja bahia pra mim. Parabéns.
Adorei como sempre. Belíssima crônica. Não deixe de ler. Vc vai amar.
Memórias de infância. Como não se emocionar. Exemplo para todos os pais e filhos.
Que sorte a minha, deixei para ler hoje, é domingo. Estou com gosto de laranja na boca, também de Adélia, de rio Pará, lembrando de minha mãe Dezi, que me ensinou a descascar laranjas. “Se ferir leva um tapa!”, dizia ela, grande educadora. Rsrs
Lindas memória!