Não me lembro quem escreveu a resenha no jornal, já há bastante tempo. Só sei que aquele texto ficou guardado na memória. Nunca cheguei a anotar em um papel, num bloco, na agenda do celular o nome daquele livro.
Sempre me rodeava quando entrava numa livraria, física ou virtual, muitas vezes nem lembrava do desejo de ler tal obra.
E um dia entrei na livraria e lembrei e comprei “Caro Michele” (Cosac Naify), de Natalia Ginzburg.
Para escapar do narrador em primeira pessoa, ela opta pelo romance epistolar. Mas não só. Em alguns momentos, Ginzburg intercala o narrador em terceira pessoa, distante, a observar seus personagens. Quando assume a voz de cada um que escreve uma carta, ela dá voz não só aos personagens, mas talvez àquele narrador onipresente. É de um sensibilidade tocante.
Passado na Itália, lá nos anos 60/70, o romance se concentra numa família e na busca pelo diálogo com o filho Michele. Mãe, duas irmãs, um amigo, uma mulher, todos escrevem a ele, querendo saber dele, recontando casos e histórias.
Há um drama familiar encarnado nas cartas, do filho envolvido com a política italiana da época, foragido, que teria largado uma mulher grávida e escapado para a Inglaterra, que teria um caso homossexual com um amigo da família, suspeita que permeia parte do romance, mas que não surge como essencial.
A família tenta se sustentar, ligar laços rompidos ou frágeis. Michele dá respostas evasivas, misteriosas e surpreendentes. Até o desfecho, que impõe incredulidade.
Ginzburg é sensível. Consegue imprimir a carga política de uma Itália em busca de sua identidade pós-fascismo, enquanto a família desmantelada procura mais do que união — quer só um pouco de paz. Ginzburg encena essa caça, em que personagens digladiam mais contra si do que contra seus destinatários. Não há como sair da leitura o mesmo.
Infelizmente, a editora foi fechada há alguns anos. Mas ainda é possível encontrar o livro na Amazon e Estante Virtual.
Trechos
“Outro dia, lembrei-me de uma vez em que você veio aqui e, logo que chegou, pôs-se a vasculhar todos os armários à procura de um tapete sardo que queria pendurar na parede do seu porão. Deve ter sido a última vez que o vi. Eu estava nessa casa havia poucos dias. Era novembro. Você zanzava pelos aposentos e vasculhava todos os armários, que tinham acabado de montar, e eu andava atrás de você, me queixando de que você sempre levava embora meus objetos. Você deve ter encontrado o tal tapete sardo, porque aqui ele não está. Também não estava no porão. De qualquer modo, pouco me importa aquela tapete, como pouco me importava naquela época.”
“Lembro-me dele talvez por estar ligado à última vez em que o vi. Lembro que, ao ficar brava e ao protestar com você, senti uma grande alegria. Sabia que meus protestos suscitariam em você um misto de alegria e aborrecimento. Penso agora que esse era um dia feliz. Mas, infelizmente, é raro conhecer os momentos felizes enquanto estamos passando por eles. Nós os reconhecemos, em geral, só à distância do momento. Para mim a felicidade estava em protestar e para você em vasculhar os meus armários.”
“Também devo dizer que perdemos naquele dia um tempo precioso. Poderíamos nos ter sentado interrogado reciprocamente sobre coisas essenciais. É provável que seríamos menos felizes, ou melhor, seríamos talvez muito infelizes. Porém, eu agora lembrarei esse dia não como um vago dia feliz, e sim como um dia verdadeiro e essencial para mim e para você, destinado a iluminar a sua e a minha pessoa, que sempre trocaram palavras de natureza inferior, jamais palavras claras e necessárias, ao contrário, palavras cinzentas, gentis, flutuantes e inúteis.”
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