Mais legal que contar as próprias histórias é ter a oportunidade de contar outras memórias. Quando falamos de nós, costumamos ser acometidos pelo ego ou pelo excesso de autocrítica. Na narrativa sobre o outro, há uma idealização positiva, a poesia flui com mais naturalidade e podemos dar aos momentos o perfume, o sabor e a textura que quisermos.
Não há decepção quando imaginamos os pratos daquele cozinheiro que adoramos tampouco limites. As memórias podem ser consumidas em excesso, sem parcimônia ou contraindicação para os níveis de colesterol.
Semana passada, recebi em um dos meus jantares abertos a Ludmila e o Valdir. Esse casal representa uma fusão gastronômica que, coincidentemente, conta um pouco da minha história. Ludmila é mineira, mulher intensa, de riso fácil, coração aberto, generosa e leitora do Cozinhas Gerais.
Valdir é dado às qualidades de um bom churrasqueiro, igualmente divertido, e transmite um ar de lealdade típico de todos os gaúchos que conheci. Um casal adorável, querido pelos vizinhos que têm na casa deles um ponto de encontro para aplacar a fome do estômago e da alma também.
A influência gaúcha na minha vida surgiu em 2009, quando passei quase dois anos em Campo Grande (MS). Para quem não conhece a Cidade Morena, ela abriga hoje mais de 40 mil gaúchos e possui dois CTGs (Centro de Tradição Gaúcha) muito atuantes na manutenção da cultura e tradições gaúchas tão alegres e divertidas. E a história de hoje será narrada enquanto a gente resiste a não levantar e dançar com o CTG Campo dos Bugres.
Ainda me lembro com exatidão de começar o domingo na casa dos pais da Gisclaine. Tereré passando na roda e cerveja gelada na mão abriam o dia. O churrasqueiro soltava carne assim que chegávamos e só parava quando dava a hora de fazer o carreteiro.
Gaúchos e mineiros se confundem na arte de receber bem. Há sempre comida farta e um preparo que se inicia no café. Pães de queijo de um lado, cucas do outro. A reunião em família começa cedo e termina quando a ressaca é curada por uma vaca-atolada de levantar defunto ou pelo carreteiro lá da casa da Gisclaine. Afinal, haja comida para acompanhar tanta bebida.
Voltando à história do casal, Ludmila me mandou semana passada as fotos dos almoços e jantares que eles preparam com os vizinhos. É impossível não imaginar o sabor indiscutível da feijoada que teve os ingredientes defumados em casa. Não há mineiro na terra que, ao ver tais fotos, não lembre daquele sábado na casa da avó ou da tia. Meninada correndo, guaraná caçulinha imitando champanhe. Meus resgates são instantâneos.
Lá na cozinha externa do Valdir, não tem espaço para fogão a lenha, mas você acha que isso impede a Ludmila de “mineirar” a comida? De forma alguma. Se não tem fogão, vai na churrasqueira mesmo. Frango caipira, quiabo que não baba e angu de milho verde. Comida que traduz o gosto de assistir às vitórias de Ayrton Senna nas manhãs de domingo.
Para celebrar a fusão de gaúchos e mineiros, a receita de hoje será uma canjiquinha com costelinha (foto no alto da página), que aprendi na casa de meu pai. Eu me convido para prepará-la aí na sua casa, Ludmila. Avisa o Luciano que a sobrinha intrometida já está se convidando e que a comida a seis mãos só pode ser boa.
Receita da costelinha uai tchê
- 200g de canjiquinha
- 1kg de costelinha de porco (se conseguir costelinhas defumadas, melhor ainda)
- 1 colher de sopa de banha
- 1 colher de sopa de alho
- 1 colher de sopa de açafrão da terra (cúrcuma)
- 1 colher de sopa de urucum
- 2 folhas de louro1 cebola grande ralada
- 1 cálice de cachaça
- ½ cálice de limão
- 1 xícara de chá de cheiro-verde
- 1 pimenta bode
- sal
Tempere as costelas com 1 colher de sopa de sal. Adicione o suco do limão, a cachaça e um pouco de água. Deixe marinando por 30 minutos.
Lave a canjiquinha várias vezes (sempre trocando a água). Escorra e leve ao fogo para cozinhar com água o bastante para cozinhar bem (verifique ao longo do processo se é necessário adicionar água até que a canjiquinha fique macia). Mexa sempre para não agarrar no fundo. Quando terminar o cozimento, reserve.
Em outra panela, refogue a costela na banha até dourar bem (use a técnica pinga-pinga, adicionando água aos poucos para que a carne cozinhe). Retire o excesso de gordura, adicione a cúrcuma, a cebola, o alho e, por último, o urucum. Depois que pegar cor, adicione a canjiquinha, misture bem, adicione um pouco de água caso o caldo esteja muito pastoso, junte as folhas de louro e abafe com a tampa.
Ajuste o sal, adicione a pimenta inteira e deixe cozinhar mais uns 20 minutos em fogo muito baixo. Desligue o fogo, adicione o cheiro verde e abafe novamente por 5 minutos e está pronto para servir.
Sirva acompanhado de taioba ou salada de agrião.
*****
Para ler as crônicas e as receitas de Marina Cunha, acesse a página da coluna Cozinhas Gerais!