Há anos, em uma entrevista à jornalista Marília Gabriela, a atriz Fernanda Montenegro contou que a sua mãe projetava nela os sonhos alimentados durante toda a vida. A mãe, educada para ser uma senhora de prendas domésticas, carregava essa domesticidade. Mesmo assim, ao longo da vida, a mãe sempre repetia: “se fosse homem seria marítimo para andar pelos mares do mundo”.
Essa vontade de sair, de viver outras vidas refletiam, segundo Fernanda Montenegro, o ressentimento de sua mãe de uma vida não venturosa. Pensar “se eu fosse homem” significava “se eu fosse livre”, “se eu tivesse o poder de escolha”, “se eu pudesse ser dona de mim”. Muitas (ou a maioria) não tinham essa opção.
Minha mãe nunca fez parte da maioria. Dona Nely não era uma típica “mulher do lar”, embora suas habilidades culinárias fossem dignas de um chef renomado e seu talento para o desenho, o bordado e costura, uma verdadeira arte. Assim como Fernanda Montenegro, Mamãe foi educada para ser uma senhora de prendas domésticas. Com a coragem de quem desafia padrões, decidiu seguir um caminho diferente.
Dona Nely abraçou o desafio de conciliar a tradição com a modernidade. Sem abandonar o conhecimento ancestral que herdara, formou-se no Magistério, depois em Ciências Sociais e Pedagogia. Durante anos, enfrentou a árdua tarefa de equilibrar o trabalho doméstico com a carreira escolhida. Dez filhos, um marido, casa e salas de aula. Uff! Era uma jornada exaustiva, mas ela seguia em frente, movida por uma determinação inabalável.
A cada passo, minha mãe demonstrava que ser mulher era muito mais do que se esperava. Ela era a prova viva de que é possível ser muitas em uma só: a mestre na cozinha, a bordadeira habilidosa, a professora dedicada e a mãe incansável. Uma mulher multifacetada que, sem abrir mão de suas raízes, conquistou seu espaço no mundo.
No ocaso da vida, tive a honra de compartilhar com Mamãe a sua versão “marítima”. A travessia do Atlântico foi um sonho realizado. Ao pisar no solo de onde partiram as caravelas que desbravaram o Brasil, era como se cada palavra repetida em suas aulas de história ganhasse vida. A emoção em seus olhos não deixava dúvidas de que aquele momento era um capítulo especial.
Juntas, exploramos a imponente Cordilheira dos Andes, onde o horizonte parecia se fundir com o infinito. Cada passo nos vinhedos chilenos era uma celebração do presente e um brinde às memórias. Vivemos a história, mas, acima de tudo, criamos novas lembranças que permanecerão eternas.
Em Minas Gerais, embarcamos numa jornada pelas cidades históricas, desbravando os mesmos caminhos que outrora foram trilhados pelos bandeirantes. O casario colonial, as igrejas imponentes, os aconchegantes restaurantes e os museus repletos de histórias eram testemunhas silenciosas, porém vivas, do passado que tantas vezes ouvimos nas salas de aula.
As ruas de pedra nos contavam segredos em cada passo, as fachadas dos antigos casarões sussurravam histórias de um tempo que parece eterno. Em cada esquina, era como se pudéssemos tocar a história com as mãos, sentir o pulsar de um Brasil que se desenhou ali, entre montanhas e vales.
Nossos passeios não eram apenas uma viagem física, mas também uma travessia pelo tempo, um resgate de memórias coletivas que enriquecem nossa identidade. Cada refeição em um restaurante centenário, cada visita a uma igreja barroca, cada objeto exposto nos museus, tudo nos fazia reviver o passado de forma intensa e emotiva.
E assim, em meio ao burburinho da vida cotidiana, a história de Dona Nely tornou-se uma crônica da força e resiliência feminina, inspirando a todos nós a nunca desistir de nossos sonhos.
Ah, e por falar em sonhos, meu lado “marítima” anda gritando. Doida para voltar a colocar os pés na estrada. Nesse caso, fecho com Santo Agostinho: “o mundo é um livro e aquele que não viaja lê sempre a mesma página”. Bora, viajar!

Que bom saber que você está bem Gisele! Parabéns por nos brindar com mais uma emocionante crônica.
Muito obrigada, Zé Vander!
Verdade. Mamãe era tinha mil faces e todas elas nos deixam saudade.
Que saudades senti da minha linda mãezinha. Sua crônica trouxe novamente o tempo bom que vivemos com nossa amada mãe. Obrigada. Amei imensamente.