Para quem permanece em nós

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Imagem - Pixabay
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Minha mãe repousa no colo de Deus. E não é de hoje. Já faz tempo. Mas nem parece. Sua trajetória terrena deixou uma permanência em nós. Não há um dia sequer sem que Dona Nely não seja citada. 

– Olha a Denise imitando a Mamãe. De novo? O pensamento é quase automático. Sempre que nossa irmã tamborila a ponta dos dedos na mesa de jantar, lá vem aquela sensação de déjà vu. É como se, por um instante, o tempo se dobrasse e nossa mãe ressurgisse ali, nos gestos repetidos pela Denise. Mas será imitação ou uma herança invisível, dessas que a gente carrega sem perceber?

– Você se lembra desse palavrão? 

Mamãe era a campeã nessa categoria. Mas não se trata daqueles bem cabeludos, daqueles que todo mundo conhece. Tinham identidade, vida própria, e deixavam meus tios perplexos, sempre voltando à mesma pergunta: 

– Mas de onde ela tira essas ideias? Qual é o palavrão que a sua mãe inventou dessa vez? 

E sempre havia. Dona Nely era novidadeira. E não dava outra. A resposta sempre surpreendia e era riso na certa.

Hoje entendo que no caso dela o palavrão não era só um palavrão. Funcionava como válvula de escape. Estratégia necessária para desafogar o estresse causado pelos excessos. Excesso de maternidade, excesso do papel de dona de casa e do ofício de professora. Tarefas destinadas aos fortes. 

Essa mulher, imensa em tudo, carregava consigo uma força discreta e uma coragem sem limites. Nada a detinha. Era uma leoa, feroz na missão de manter a família unida – tarefa cumprida com louvor. Se houvesse um céu de estrelinhas para premiar mães incansáveis, o dela brilharia sem igual. Na nossa mesa sempre posta nunca nos faltou o essencial: seu amor inabalável por nós e por quem a cercava. Amigos, vizinhos, colegas eram brindadas pela sua elegância, gentileza e generosidade.

Inabalável também era a sua fé. E foi a sua certeza no imponderável que a fez se encantar com serenidade. Mamãe se foi sem alarde. Essa serenidade era a certeza de que seria bem recebida na Casa do Pai. Adélia, sempre Adélia, traduz essa viagem à eternidade: 

Se não fosse a esperança de que me aguardas com a mesa posta o que seria de mim eu não sei.  (…) acima e abaixo e ao redor do que existe permaneces, eu repouso meu rosto nesta areia contemplando as formigas, envelhecendo em paz como envelhece o que é de amoroso dono. O mar é tão pequenino diante do que eu choraria se não fosses meu Pai. Ó Deus, ainda assim não é sem temor que Te amo, nem sem medo”.

E se para traduzir a trajetória de Dona Nely no retorno à fonte recorro à Adélia, por que não recorrer à magia de Guimarães Rosa para falar sobre maio, não por acaso o mês das mães, mês de Maria? 

Aí, mês de maio! Falei com a Estrela Dalva. O orvalho pripingando baciadas. E os grilos no chirilim. E o céu azul no repintado com as nuvens que não se removem. Quero bem a esses maios. O sol bom, o frio de saúde, as flores no campo, os finos ventos, maiorzinhos”.

É nessa escrita roseana, uma verdadeira pintura de palavras, repleta de musicalidade, de invencionices linguísticas e sensoriais, que declaro o meu amor definitivo por essa mulher de excessos, plena de virtudes. Viva, Dona Nely! Pra sempre, viva. 

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