Ressignificação do luto ajuda a enfrentar a perda

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Ressignificação do luto é um processo importante para lidar com a perda

Só quem já perdeu alguém muito próximo entende a dimensão e o sofrimento do luto. Passar por essa experiência é traumático e doloroso, mas pode oferecer um novo significado para a vida de quem fica. Frente à proximidade de uma época do ano em que a saudade e a melancolia pós-perda podem aumentar, o Boas Novas foi em busca de histórias de inspiração, de quem encontrou um novo caminho em meio à dor.

Foi falando sobre o próprio luto no documentário “O Segundo Sol” que o casal Fabrício Gimenes e Rafaella Callegari conseguiu elaborar a perda de Miguel, bebê que não chegou a nascer com vida e que faria três anos em novembro de 2017. Aos nove meses de gestação, a mãe se preparava para o parto quando recebeu a notícia de que o coração do filho não batia mais.

Conforme ela conta, o susto, a decepção, a revolta e a tristeza se misturaram no momento em que teve de tomar a decisão de passar pelo parto normal induzido, dando à luz uma criança que não levaria para casa.

Rafaella Callegari e Miguel, aos nove meses de gestação

“Parir essa dor”, expressão que ela usa, foi o início de um processo extremamente delicado: o de se despedir de alguém que, a rigor, não chegou sequer a existir. “É claro que para os pais a criança existiu. Há uma história por trás, há o crescimento da barriga, as expectativas, toda uma idealização. Existe um vínculo ali, que se rompe de uma maneira muito dolorosa com a morte”, comenta a terapeuta Renata Duailibi, que acompanhou o casal no processo de elaboração do luto e também participou do documentário.

Para Rafaella, também dolorosa era a sensação de não ter o luto reconhecido. “Há uma crença cultural de que os bebês que não nascem viram anjos. Assim, ser ‘mãe de anjo’ é como se fosse algo mágico, como se eu tivesse sido ‘escolhida por Deus’ aos olhos de parte da sociedade. Tem também quem fala ‘logo você tem outro filho e esquece’. É uma carga emocional absurda, porque é um luto invisível. A solidão é compulsória, nestes casos”, avalia.

Procura de apoio mútuo

Perdida, ela tentou procurar conforto na literatura, no audiovisual, mas não encontrou obras que falassem a respeito da perda neonatal. Nas sessões de terapia, então, concebeu, junto com o marido, o projeto do documentário, que daria voz a outros pais e mães que passaram pela mesma dor, também no intuito de que se apoiassem mutuamente. Selecionou cinco famílias que pudessem simplesmente contar suas histórias e experiências.

Foi essa a forma que Rafaella encontrou de ressignificar a perda de Miguel, cuja memória foi eternizada no filme, lançado em 2015, nove meses depois da morte do bebê. “Precisávamos contar essa história, falar sobre essa dor. Logo depois da perda, a gente acha que nunca vai sair daquele lugar. Mas o processo de ‘O Segundo So’l me ensinou que eu não estava parada no tempo, que de alguma forma estava caminhando. Foi um acalanto, trouxe um tipo de paz, porque agora eu sei que o Miguel não vai ser esquecido. É o legado dele”, afirma.

A terapeuta Renata Dualibi, que trabalhou o luto com Rafaella e Farbrício

Encontrar, porém, um caminho para trilhar durante o luto não é fácil. Para Renata Duailibi, este também é um processo de autoconhecimento. “É preciso passar pelo luto, pelo choro, pela dor. Cada pessoa reage de uma maneira diferente e não existe um tempo específico para estar ‘curado’. As pessoas têm a tendência de minimizar a dor, dizendo que ‘vai passar’. Vai passar, sim, mas antes vai doer. É preciso deixar que essa dor se realize. É preciso falar sobre ela, mas poucos estão dispostos a ouvir”, diz a terapeuta.

Ressignificação do luto e o isolamento

Para Rafaella, a busca pela ressignificação que a conduziu à produção do documentário passou antes por um certo isolamento. “Por um tempo, sublimei todas as outras relações para elaborar, dentro de mim, a perda do Miguel. Precisava me conhecer para entender e saber para onde ir. Eu só tinha a mim mesma para me salvar. Deixei de lado a Rafaella mãe da Cecília, mulher do Fabrício. Por um tempo, olhei só para mim, para conseguir ter esse autocuidado”, relembra.

O resultado foi uma obra que ajudou na elaboração do luto do casal, mas que também auxilia outras pessoas que passam pela mesma perda. “Muita gente demora a vida toda para descobrir que só vale a pena estar no mundo se for para contribuir com o coletivo. ‘O Segundo Sol’ também trouxe isso para mim”, diz.

O processo de ressignificar, porém, nem sempre passa por realizar algo que vai ajudar outras pessoas. Segundo Renata Duailibi, este é um caminho individual, que cada um encontra de acordo com a própria história. “O importante é criar um marco, definindo que o processo está caminhando. Pode ser uma tatuagem, um texto, qualquer forma de expressar que aquela pessoa não vai ser esquecida”, afirma.

Desabafo para exteriorizar a dor

Também na tentativa de exteriorizar a dor da perda de alguém querido, sete amigas paulistanas montaram a plataforma Vamos Falar sobre o Luto?, que conta com uma página no Facebook e um site. O projeto, iniciado em novembro de 2014, oferece um espaço para que os enlutados desabafem, em forma de texto ou depoimento, sobre a própria dor e de seus processos de enfrentamento do luto.

Uma das idealizadoras é Amanda Thomaz, que perdeu o pai de forma repentina. “Na época, queria falar sobre ele, falar das lembranças e dos sentimentos, mas percebia que causava constrangimento nas outras pessoas quando tocava no assunto. Ninguém quer falar sobre isso, e as informações disponíveis para ajudar vão no sentido religioso, do espiritismo, por exemplo. Era difícil encontrar alguma coisa que pudesse confortar”, diz.

As sete amigas que criaram o projeto Vamos Falar sobre o Luto?

Com o canal aberto, as histórias começaram a aparecer — inclusive, a de Rafaella e de seu documentário. Hoje, a comunidade reúne mais de 21 mil pessoas no Facebook. “A ideia era aproximar as pessoas que estão passando por isso, e as histórias são muito inspiradoras. É um grande aprendizado lidar com isso, com o amor, com a dor. Para mim, pessoalmente, foi uma forma de homenagear meu pai. A saudade sempre existe, mas por meio do contato com essas histórias aprendi a lidar com isso de uma maneira diferente”, afirma.

Assista ao documentário “O Segundo Sol”

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